domingo, 30 de março de 2014

Negligência ou fogo-posto

Louca
vive no fim do lugar
na margem da floresta
à noite 
pousar-lhe-ia
a coruja num ombro
e os lobos
desciam as montanhas
e vinham-lhe comer
à mão
altas horas
faíscavam espantosas
fosforências
e saíam dali homens
tenebrosos
rezavam as má-línguas
que era tentada
pela poesia
e dada ao mau-olhado
o povo falava
de tudo aquilo a contragosto
até que um dia
um incêndio devorou a louca
e a sua casa
dividia-se a aldeia
comentando
abertamente ou entredentes 
que tinha sido 
providência divina 
fogo-posto!

Lisboa, 30 de Março de 2014
Carlos Vieira




DA POESIA MODERNA



O poema da mente no ato de encontrar
O que há de bastar. Não teve sempre
De encontrar: a cena estava armada; repetia o que
Estava no roteiro.
                            Então o teatro foi mudado
Para uma outra coisa. Seu passado um suvenir.
Tem de estar vivo, aprender a fala do lugar.
Tem de encarar os homens do tempo e encontrar
As mulheres do tempo. Tem de pensar na guerra
E tem de achar o que bastará. Tem de
Construir um novo palco. Tem de estar nesse palco
E, como um ator insaciável, lentamente e
Com meditação, dizer as palavras que no ouvido,
No delicadíssimo ouvido da mente, repitam,
Exatamente, aquilo que se quer ouvir, ao som
Do qual uma audiência invisível escuta,
Não a peça, mas a si mesma, expressa
Numa emoção como de duas pessoas, como de duas
Emoções tornando-se uma. O ator é
Um metafísico no escuro, tangendo
Um instrumento, tangendo uma corda tensa que dá
Sons que assumem repentina correção, de todo
Contendo a mente, abaixo da qual não poderá descer,
Além da qual não tem vontade de subir.
                                                                      Tem de
Ser o encontrar de uma satisfação, e pode ser
Um homem patinando ou uma mulher dançando, uma mulher
Penteando-se. O poema do ato da mente.

Carta simples


Hoje quis escrever-te e não consegui.
Pesam-me os verbos como pedras
nestes dedos, mas vês,
é sobre ti que se debruçam as palavras
que não saem
e nestes olhos a gratidão
de saberes sempre quando preciso da tua mão
na face, quase materna, quase amante,
e azuis os rasgos de ternura
de uns olhos castanhos e
meigos
que me libertam das águas revoltas
onde lutam os meus neurónios
em batalhas estéreis e sem sentido.
Tens sido tu o porto de abrigo
que me recolhe nas paisagens desse País
que escondes no teu corpo e no teu nome
e me dá uma paz profunda
e me asseguras na minha infantil insegurança
que o passaporte que assinaste para eu aí viver
é vitalício e sem encargos,
esse País tão infinito onde me quero nacionalizar
e ter asilo.
Se conseguisse, hoje tentaria explicar-te
que as razões da minha insegurança
vêm do facto de que quando me multiplico
nos jardins que escolho com cuidado
a água desaparece sem razão
correndo aos poucos para outros rios,
desidratando-me os afectos.
Sou inseguro e insistente
devido à inevitabilidade de que perpetuarás
esse ciclo, e que tenhas medo e fujas
e ergas muros que ficarei a contemplar
com os meus olhos tristes
que te dizem tanto sem dizerem nada,
excepto não tenhas medo,
não fujas,
não vás,
não sejas um rio
onde estas raízes não bebam.



w.d. sevahc




Jardinagem



De vez em quando
volto àquele jardim
não só pelas flores
mas regresso a mim
como se os odores
me fizessem pensar
a essência de outros
que as minhas dores
são os seus espinhos
e que pétalas caídas
são lágrimas e rastos
espanto dessas vidas
e quando as corolas
desabrocham revelam
segredos inconfessáveis
ou até imploram esmolas
a abelha anda em redor
a procurar o doce mel
e prova o sabor do fel
enfim se penso voltar
ao último abrigo da alma 
sou jardineiro enredado 
na teia do meu coração
pobres são as plantas
que no melhor de mim 
procuram sustentar-se
sendo que é função
de cada um de nós
também ser para vós
sombras e perfumes
e arbustos de jardim.

Lisboa, 30 de Março de 2014
Carlos Vieira





Uma vida por um gato



sei de um gato
que passou a vida
pensativamente
á janela
bem interrompia
esses momentos
de aturada
reflexão
e num àpice 
bebia aquele leite
meio-gordo
que o espetro 
da sua dona
religiosamente
todos os dias
da sua vida
lhe abastecia 
a tigela
e cada um
é para o que nasce
uns deviam ser gatos
outros não.

Lisboa, 29 de Março de 2014
Carlos Vieira

Anatomia de um abandono

Não sabe onde 
te perdeu
nem porquê
que palavra te doeu
ou ficou por dizer
talvez o olhar
que não cuidou
ou distante
te esqueceu
que gesto te magoou
quando julgava
que te abraçava
foi a distância 
ou a sua urgência
foi um beijo breve
que quiseste
mais quente
foi a demora
ou não querer 
dizer-te que não
foi esquecer
ou a sofreguidão
amar-te
foi não saber
que existes
num momento
e num espaço
que não podes
compreender
ou que te perdes
apenas
por respirar.

Lisboa, 29 de Março de 2014 
Carlos Vieira





sábado, 29 de março de 2014

A cortina diáfana...

A cortina diáfana
deixa passar
a luz timída da tarde
no meu desvelo
embevecido
na cadeira de vime 
tu cochilas
em trajes menores
sequela 
de um amor maior
minha Emanuelle.

Lisboa, 29 de Março de 2014
Carlos Vieira