domingo, 30 de março de 2014

Jardinagem



De vez em quando
volto àquele jardim
não só pelas flores
mas regresso a mim
como se os odores
me fizessem pensar
a essência de outros
que as minhas dores
são os seus espinhos
e que pétalas caídas
são lágrimas e rastos
espanto dessas vidas
e quando as corolas
desabrocham revelam
segredos inconfessáveis
ou até imploram esmolas
a abelha anda em redor
a procurar o doce mel
e prova o sabor do fel
enfim se penso voltar
ao último abrigo da alma 
sou jardineiro enredado 
na teia do meu coração
pobres são as plantas
que no melhor de mim 
procuram sustentar-se
sendo que é função
de cada um de nós
também ser para vós
sombras e perfumes
e arbustos de jardim.

Lisboa, 30 de Março de 2014
Carlos Vieira





Uma vida por um gato



sei de um gato
que passou a vida
pensativamente
á janela
bem interrompia
esses momentos
de aturada
reflexão
e num àpice 
bebia aquele leite
meio-gordo
que o espetro 
da sua dona
religiosamente
todos os dias
da sua vida
lhe abastecia 
a tigela
e cada um
é para o que nasce
uns deviam ser gatos
outros não.

Lisboa, 29 de Março de 2014
Carlos Vieira

Anatomia de um abandono

Não sabe onde 
te perdeu
nem porquê
que palavra te doeu
ou ficou por dizer
talvez o olhar
que não cuidou
ou distante
te esqueceu
que gesto te magoou
quando julgava
que te abraçava
foi a distância 
ou a sua urgência
foi um beijo breve
que quiseste
mais quente
foi a demora
ou não querer 
dizer-te que não
foi esquecer
ou a sofreguidão
amar-te
foi não saber
que existes
num momento
e num espaço
que não podes
compreender
ou que te perdes
apenas
por respirar.

Lisboa, 29 de Março de 2014 
Carlos Vieira





sábado, 29 de março de 2014

A cortina diáfana...

A cortina diáfana
deixa passar
a luz timída da tarde
no meu desvelo
embevecido
na cadeira de vime 
tu cochilas
em trajes menores
sequela 
de um amor maior
minha Emanuelle.

Lisboa, 29 de Março de 2014
Carlos Vieira




os primeiros encontros

cada momento passado juntos
era uma celebração, uma Epifania,
nós os dois sozinhos no mundo.
tu, tão audaz, mais leve que uma asa,
descias numa vertigem a escada
a dois e dois, arrastando-me
através de húmidos lilases, aos teus domínios
do outro lado, passando o espelho.









arsenii tarkovskii8 ìcones
versão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987




Coisas


há coisas que vão ficando 
fotografias   louças   contas antigas 
                            não sei 

debruçámo-nos tanto 
sobre a minúcia do quotidiano 
       que o dia a dia excedeu as nossas vidas 

não sei como resiste o que perdura 

olho o telefone de coração na boca 
e aponto coisas para não me esquecer 

Luís Amorim de Sousa, in 'Nadar no Escuro"

COMISSÃO DE SERVIÇO



Ide, cantos meus, ao solitário e ao insatisfeito,
Ao nevrótico também, ao que por convenção não é escravo,
Mostrai-lhe meu desprezo por quantos os oprimem.
Ide como alta vaga de água fria,
Fixai o meu desprezo pelos opressores.

Prégai contra a opressão inconsciente,
Prégai contra a tirania do inimaginável,
Prégai contra os acordos.
Ide à burguesia que morre de seus tédios,
Às mulheres nos subúrbios,
Aos noivados revoltantes,
Àqueles cuja falência foi dissimulada,
Aos amantes infelizes,
À esposa comprada,
À mulher vinculada.

Ide àqueles que têm gostos delicados,
Àqueles cujos delicados desejos são frustrados,
Ide como uma praga sobre a estupidez do mundo;
Ide com vosso gume contra isto,
Reforçando as cordas subtis,
Levai confiança nas algas e nos tentáculos da alma.

Ide de maneira afectuosa;
Ide com um discurso claro,
Sede ansiosos por encontrar novos demónios e novas bondades,
Sede contra todas as formas de opressão.
Ide a quantos emagreceram pela meia-idade,
Ide a quantos perderam seus interesses.
Ide junto do adolescente que é amolecido na família –
Oh como é odioso
Ver três gerações numa casa existindo juntas!
É como uma velha árvore com rebentos
E com alguns ramos secos e a cair.

Ide-vos e não cuideis de opiniões,
Ide contra esta escravidão vegetal do sangue.
Sede contra toda a espécie de amortizações.


EZRA POUND
(versão portuguesa de Fernando Guedes)