sábado, 29 de março de 2014

os primeiros encontros

cada momento passado juntos
era uma celebração, uma Epifania,
nós os dois sozinhos no mundo.
tu, tão audaz, mais leve que uma asa,
descias numa vertigem a escada
a dois e dois, arrastando-me
através de húmidos lilases, aos teus domínios
do outro lado, passando o espelho.









arsenii tarkovskii8 ìcones
versão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987




Coisas


há coisas que vão ficando 
fotografias   louças   contas antigas 
                            não sei 

debruçámo-nos tanto 
sobre a minúcia do quotidiano 
       que o dia a dia excedeu as nossas vidas 

não sei como resiste o que perdura 

olho o telefone de coração na boca 
e aponto coisas para não me esquecer 

Luís Amorim de Sousa, in 'Nadar no Escuro"

COMISSÃO DE SERVIÇO



Ide, cantos meus, ao solitário e ao insatisfeito,
Ao nevrótico também, ao que por convenção não é escravo,
Mostrai-lhe meu desprezo por quantos os oprimem.
Ide como alta vaga de água fria,
Fixai o meu desprezo pelos opressores.

Prégai contra a opressão inconsciente,
Prégai contra a tirania do inimaginável,
Prégai contra os acordos.
Ide à burguesia que morre de seus tédios,
Às mulheres nos subúrbios,
Aos noivados revoltantes,
Àqueles cuja falência foi dissimulada,
Aos amantes infelizes,
À esposa comprada,
À mulher vinculada.

Ide àqueles que têm gostos delicados,
Àqueles cujos delicados desejos são frustrados,
Ide como uma praga sobre a estupidez do mundo;
Ide com vosso gume contra isto,
Reforçando as cordas subtis,
Levai confiança nas algas e nos tentáculos da alma.

Ide de maneira afectuosa;
Ide com um discurso claro,
Sede ansiosos por encontrar novos demónios e novas bondades,
Sede contra todas as formas de opressão.
Ide a quantos emagreceram pela meia-idade,
Ide a quantos perderam seus interesses.
Ide junto do adolescente que é amolecido na família –
Oh como é odioso
Ver três gerações numa casa existindo juntas!
É como uma velha árvore com rebentos
E com alguns ramos secos e a cair.

Ide-vos e não cuideis de opiniões,
Ide contra esta escravidão vegetal do sangue.
Sede contra toda a espécie de amortizações.


EZRA POUND
(versão portuguesa de Fernando Guedes)

À espera dos Bárbaros


O que esperamos nós agora aqui reunidos?

É que os bárbaros chegam hoje.

Por que tanta apatia no senado?Os senadores não legislam mais?

É que os bárbaros chegam hoje.
Que leis hão de fazer os senadores?
Os bárbaros que chegam as farão.

Por que o imperador se ergueu tão cedo
e de coroa solene se assentou
em seu trono, à porta magna da cidade?

É que os bárbaros chegam hoje.
O nosso imperador conta saudar
o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe
um pergaminho no qual estão escritos
muitos nomes e títulos.

Por que hoje os dois cônsules e os pretores
usam togas de púrpura, bordadas,
e pulseiras com grandes ametistas
e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?
Por que hoje empunham bastões tão preciosos
de ouro e prata finamente cravejados?

É que os bárbaros chegam hoje,
tais coisas os deslumbram.

Por que não vêm os dignos oradores
derramar o seu verbo como sempre?

É que os bárbaros chegam hoje
e aborrecem arengas, eloqüências.

Por que subitamente esta inquietude?
(Que seriedade nas fisionomias!)
Por que tão rápido as ruas se esvaziam
e todos voltam para casa preocupados?

Porque é já noite, os bárbaros não vêm
e gente recém-chegada das fronteiras
diz que não há mais bárbaros.

Sem bárbaros o que será de nós?
Ah! eles eram uma solução. [Antes de 1911]

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Konstantinos Kaváfis (1863-1933) – trad. de José Paulo Paes

A oeste nada de novo


Sentou-se na esplanada
estratégicamente voltado 
para oeste
pediu um copo de água
o empregado assentiu 
contrariado
mas para ele 
nada podia contaminar
a sede da silhueta
a desevencilhar-se 
dos arbustos e das árvores
do jardim
a sua progressiva 
libertação das sombras
o contraste da delicadeza 
dos seus gestos
cristalinos
e da inacreditável doçura 
da sua face
com o fogo a crepitar
no seu olhar
e cada vez que a recordava
bebia um gole da água
que o empregado 
trouxera contrariado
e a oeste da esplanada
nada de novo.


Lisboa, 29 de Março de 2014
Carlos Vieira



"le tiers exclu"...

"(...) Talvez

a língua francesa seja mais exacta? ou todos
sejamos igualmente exactos, cada qual
na sua língua mãe? mais leves? Admirava
a boca de B., as palavras francesas na boca de B.
mais francesas do que as palavras francesas na boca
do homem suíço, que era teólogo e alemão, possivelmente.
Os estrangeiros nunca falam a língua francesa
com a desejada exactidão, com a clareza
típica da língua francesa falada por uma boca
igualmente francesa, e a boca de B.
era uma boca francesa, como a roupa de B.
era uma roupa francesa, e o corpo de B.
escondido no avesso da sua roupa francesa
era um corpo francês, inteiramente
alheio ao homem suíço menos jovem
à teologia e à santidade do homem suíço ansioso
por seduzir com a inocência todos os
jovens inocentes ou não inocentes à vista
na praça oval chamada Wilson, que éramos
nós, B. e eu. (...)"


excerto de "le tiers exclu, fantasia política", do livro Quatro Caprichos (Lisboa: Assírio & Alvim, 1999), de António Franco Alexandre.

O insustentável conhecimento dos animais





 «Aos homens deu Deus uso da razão, e não aos peixes; mas neste caso os homens tinham a razão sem o uso, e os peixes, o uso sem a razão» do capítulo II do Sermão de Santo António aos Peixes?

Fui até à margem do rio
uma galinhola escapuliu-se 
estridente pelo canavial
e todas as minhas reflexões
abandonaram-me loucas
e foram a correr atrás dela
fiquei sentado ao pé mim
contrariando o eu caçador
ancestral quedo sem saber 
o que pensar junto ao rio
que me trazia e me levava
um caudal de recordações
dali a pouco oiço o restolhar
dos pensamentos na feroz 
perseguição e a galinhola 
veio aninhar-se atordoada
aos meus pés enquanto
falávamos eu barbos e bogas
da pesporrência do rouxinol.

Lisboa, 29 de Março de 2014


Carlos Vieira