sábado, 29 de março de 2014

À espera dos Bárbaros


O que esperamos nós agora aqui reunidos?

É que os bárbaros chegam hoje.

Por que tanta apatia no senado?Os senadores não legislam mais?

É que os bárbaros chegam hoje.
Que leis hão de fazer os senadores?
Os bárbaros que chegam as farão.

Por que o imperador se ergueu tão cedo
e de coroa solene se assentou
em seu trono, à porta magna da cidade?

É que os bárbaros chegam hoje.
O nosso imperador conta saudar
o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe
um pergaminho no qual estão escritos
muitos nomes e títulos.

Por que hoje os dois cônsules e os pretores
usam togas de púrpura, bordadas,
e pulseiras com grandes ametistas
e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?
Por que hoje empunham bastões tão preciosos
de ouro e prata finamente cravejados?

É que os bárbaros chegam hoje,
tais coisas os deslumbram.

Por que não vêm os dignos oradores
derramar o seu verbo como sempre?

É que os bárbaros chegam hoje
e aborrecem arengas, eloqüências.

Por que subitamente esta inquietude?
(Que seriedade nas fisionomias!)
Por que tão rápido as ruas se esvaziam
e todos voltam para casa preocupados?

Porque é já noite, os bárbaros não vêm
e gente recém-chegada das fronteiras
diz que não há mais bárbaros.

Sem bárbaros o que será de nós?
Ah! eles eram uma solução. [Antes de 1911]

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Konstantinos Kaváfis (1863-1933) – trad. de José Paulo Paes

A oeste nada de novo


Sentou-se na esplanada
estratégicamente voltado 
para oeste
pediu um copo de água
o empregado assentiu 
contrariado
mas para ele 
nada podia contaminar
a sede da silhueta
a desevencilhar-se 
dos arbustos e das árvores
do jardim
a sua progressiva 
libertação das sombras
o contraste da delicadeza 
dos seus gestos
cristalinos
e da inacreditável doçura 
da sua face
com o fogo a crepitar
no seu olhar
e cada vez que a recordava
bebia um gole da água
que o empregado 
trouxera contrariado
e a oeste da esplanada
nada de novo.


Lisboa, 29 de Março de 2014
Carlos Vieira



"le tiers exclu"...

"(...) Talvez

a língua francesa seja mais exacta? ou todos
sejamos igualmente exactos, cada qual
na sua língua mãe? mais leves? Admirava
a boca de B., as palavras francesas na boca de B.
mais francesas do que as palavras francesas na boca
do homem suíço, que era teólogo e alemão, possivelmente.
Os estrangeiros nunca falam a língua francesa
com a desejada exactidão, com a clareza
típica da língua francesa falada por uma boca
igualmente francesa, e a boca de B.
era uma boca francesa, como a roupa de B.
era uma roupa francesa, e o corpo de B.
escondido no avesso da sua roupa francesa
era um corpo francês, inteiramente
alheio ao homem suíço menos jovem
à teologia e à santidade do homem suíço ansioso
por seduzir com a inocência todos os
jovens inocentes ou não inocentes à vista
na praça oval chamada Wilson, que éramos
nós, B. e eu. (...)"


excerto de "le tiers exclu, fantasia política", do livro Quatro Caprichos (Lisboa: Assírio & Alvim, 1999), de António Franco Alexandre.

O insustentável conhecimento dos animais





 «Aos homens deu Deus uso da razão, e não aos peixes; mas neste caso os homens tinham a razão sem o uso, e os peixes, o uso sem a razão» do capítulo II do Sermão de Santo António aos Peixes?

Fui até à margem do rio
uma galinhola escapuliu-se 
estridente pelo canavial
e todas as minhas reflexões
abandonaram-me loucas
e foram a correr atrás dela
fiquei sentado ao pé mim
contrariando o eu caçador
ancestral quedo sem saber 
o que pensar junto ao rio
que me trazia e me levava
um caudal de recordações
dali a pouco oiço o restolhar
dos pensamentos na feroz 
perseguição e a galinhola 
veio aninhar-se atordoada
aos meus pés enquanto
falávamos eu barbos e bogas
da pesporrência do rouxinol.

Lisboa, 29 de Março de 2014


Carlos Vieira

sexta-feira, 28 de março de 2014

Enquanto chove...

Enquanto chove
à mulher ocasional
ouço-lhe todo o rosário
de lamentações
que a todos corrói
no abandono do quintal
em simultâneo
oiço toda a manhã
os pingos de chuva
na bacia de esmalte
em requiem de fundo.

Lisboa, 28 de Março de 2014

Carlos Vieira

quinta-feira, 27 de março de 2014

Panorâmica VII



Chegou à praça, um imenso rectângulo onde o sol ameaçava qualquer sombra
já ele ía alto na manhã e do extraorinário rectângulo do teu leito escorriam os lençóis
tu eras uma estátua de pedra onde correram um dia sonhos de água e adormeceu o fogo.

Lisboa, 27 de Março de 2014
Carlos Vieira

Panorâmica VIII



O cavalo resfolgava, correndo de um lado ou outro na frente do exército que expectante aguardava, os estandartes erguiam-se flamejantes e nas pontas das nervosas lanças, o sol dardejava, as lâminas afiadas das espadas suspiravam, os arcos ardiam de desejo pelas inquietas setas, o general conhecia em detalhe todas as suas armas e estava confiante que 
a transcendência de alguns dos seus homens pudesse vencer a desconhecida cobardia 
e traição de outros, o resto ele confiava na incrível capacidade de encontrar o ritmo da batalha, 
de perceber a perturbadora vantagem de conhecer, sentir o pátrio terreno e a esperançosa 
resposta que dera perante os últimos apelos desesesperados da sua amada que em preces 
e ânsias, aguardava, se a desdita da derrota o acometesse por certo a venderia muito cara.

Lisboa, 27 de Março de 2014
Carlos Vieira