segunda-feira, 17 de março de 2014

O poder da palavra


O que fazer?
vou alinhavando
as palavras
na folha em branco
lanço-lhe um apelo
ou acentuo-lhe
as sílabas
ou chamo-as
pelos dois nomes
como a minha mãe fazia

deixo-as
voar como os áugures
na minha mente
ai se eu as soubesse ler!
que elas me ajudem
a encontrar o caminho
da razão
daquela palavra
que abre ao mesmo tempo
no coração
uma clareira
no desassossego

a palavra
sombra breve
para um momento
de descanso
sem palavras
de traduzir o silêncio

se seguindo
palavra a palavra
pudesse voltar
onde eu um dia te perdi
e tu te calaste

se eu tivesse
um discurso
se eu soubesse
o que dizer?

Lisboa, 17 de Março de 2014

Carlos Vieira

domingo, 16 de março de 2014

Contra o silêncio

Contra o silêncio

I
Escreve
lança palavras 
e mais palavras
à terra 
ao mar
ao vento
até esqueceres 
a língua materna
e voltares a ser
um animal
a uivar
sem cessar.

II
Usa
a caneta
como um escopro
que faz soltar
lascas e chispas e lascas
das pedras caladas
até ganharem alma
solidária
e serem no mundo
esquinas 
de revolta
de vento a assobiar.

III
No labirinto 
de um país
encontras portas 
para o abismo 
e saídas 
para o nada
sem futuro
onde se já
foi feliz e tudo
agora cresces
outra vez
com medo 
solta o verbo e diz
nem que fiques
a falar
sozinho.

IV
Um mar de chumbo
e nenhum navio 
ou rastos na praia 
uma vida inteira
a contar 
grãos de areia
e a seguir
as tangentes dos voos
das gaivotas
a crocitar
naufrágios
e tempestades
canta canta sempre
nem que sejas
um humano
e que sejam apenas
cantos de sereia.

V
A casa
a trinta metros da altura 
da vida
é um ataúde
de três assoalhadas
e uma hipoteca
no sétimo andar
da solidão
e do desespero
mas sai
vais em pé 
no elevador
para debaixo do chão
resiste
não te deixes
enterrar vivo
carrega no alarme
e grita grita grita
reclama
tudo que te cabe
no coração.

VI
No céu 
nem uma nuvem 
ou astros
ou uma ave
dali agora 
não esperes nada
nem o relampejar
ou o troar
de uma ideia
ou gesto 
de misericórdia
tu és o trovão
e um raio na terra
pássaro estridente
astro de fogo
herói 
soerguendo-se
do vazio.

Lisboa, 16 de Março de 2014
Carlos Vieira





sábado, 15 de março de 2014

A caixa das mudanças

Avariou-se
a caixa de mudanças 
do meu carro
agora só
anda em primeira
que grande mudança
nas nossas vidas
pode ser a vida
sem carro
no mesmo ritmo
a pedir outras
mudanças.

Lisboa, 15 de Março de 2014
Carlos Vieira

Hoje ele podia...

Hoje ele podia ir passear o cão à rua
talvez encontre a bela vizinha
tem um problema danado
não tem cão
nem gato.

Lisboa, 15 de Março de 2014
Carlos Vieira



Mãos amputadas

Memória nas palmas das tuas mãos
ajeitando raios de sol
na fundição do tempo

mantendo o rumo 
e descendo à noite às aldeias
mãos de veludo de surripiar 

contorcendo-se na magia 
e na festa das palavras caídas no chão
mãos que te despertam

mãos de trazer os bichos
para casa
de reinventar a humanidade

mãos de puxar o cobertor
de um sono solto
de acalmar o sobressalto

mãos na tua face secando
a lágrima
e que acende o sorriso

mãos em concha
a inventar na solidão a ternura 
e a razão

mãos que exortam a loucura
de dedos delgados
de toque hábil

mãos de escrevinhar
sem parar
de orar

mãos no ar
e da claustrofobia
e de acreditar

mãos para morrer
de misericórdia
e para empunhar o punhal do amor

mãos que são garras e são solares 
e abertas
no corpo charruas de fogo a lavrar 

Lisboa, 15 de Março de 2014
Carlos Vieira







fim de linha


põe a mão no carril
sente o último calor 
do amor que o abandonou

depois pousa
o ouvido e ainda escuta
o comboio que a levou

adormece extenuado
o carril serve-lhe de almofada
por fim.

Lisboa, 15 de Março de 2014
Carlos Vieira



En garde!


o bailado
dos esgrimistas
em duelo

a arte de se eximir
às estocadas
da vida

percebe-se 
debaixo da máscara
a perspicácia no olhar

o suor e ousadia
a tenacidade
a lâmina do sabre paciente 

vai arriscar do golpe
que podendo ser
de glória lhe será fatal 

no entanto no final 
foi mais um toque apenas
um combate perdido.

Lisboa, 15 de Março de 2014
Carlos Vieira