terça-feira, 4 de março de 2014

A chuva...

A chuva
tira o pó das palavras
é inimiga do poeta
que ao reconstituir
os versos alagados
apanhou
uma pneumonia
perdendo
aqueles para sempre.

Lisboa, 4 de Fevereiro de 2014

Carlos Vieira

segunda-feira, 3 de março de 2014

Pregando

Prego
na parede
à espera de ti
pendurada
vou adorar-te
a preto e branco.

Prego
perfurando a tábua
da salvação
cego
fixa as tuas mãos
na minha mágoa.

Prego
na interseção
dos veios da tábua
e dos mandamentos
memória triste
de ferrugem.


Prego
solitário que entra
na carne dos materiais
fica em silêncio
preso à morte
desprendido da vida.

Prego ou cravo
que segura a flor
e o estendal
o animal
e o martelo
que erra o prego
invade-me
uma dor
às vezes sai-me
um santo
outras uma blasfémia.

Lisboa, 3 de Fevereiro de 2014

Carlos Vieira

sábado, 1 de março de 2014

Fantasia V



O meu gato dormita
na lareira
crepita a lenha verde
a lanterna
derrama a luz etérea
e antiga
só o teu sangue ferve
e me agita
sobre a tua pele áurea
despes-te
bebes um copo de água
imploras
a urgência de um abraço
e impões
a imponência dos teus seios
fecho os olhos
falta-me o ar e saio porta fora
é impossível
continuar a viver de sonhos
tão reais.

Lisboa, 1 de Março de 2014
Carlos Vieira



Fantasia IV


Um lenço acena 
no cais
ave enviesada
que paira
sobre a cabeça
de um vulto
de cabelo 
desgrenhado.

O navio 
fito
esgueira-se
no seu rumo
a mulher
no corropio 
que a cerca
permanece
não desvia
o olhar
o seu amor 
é em directo.

Nunca 
vai acreditar
que partiu
o homem
do leme
pois continua
dentro de si
a latejar.

Não crê
que deixou
de ser 
âncora
sem explicação
assim
esquecida
no fundo do mar.

Sobre as águas
da enseada 
amena
o enorme manto
de espuma
branca
cobre agora 
lentamente
o vulto da mulher
é tarde 
e o seu amor
está à sua espera
sempre ali esteve
nunca partiu.

Lisboa, 1 de Março de 2014
Carlos Vieira





Fantasia III



Chove copiosamente
sobre o teu corpo nu
se eu pudera
passar pelos intervalos
da chuva
a esta hora 
já estaria bêbedo
da tua nudez

Lisboa, 1 de Março de 2014
Carlos Vieira


Fantasia II


Pudesse eu saber
a senha
que me dá acesso 
ao teu adormecido
refúgio
que permitisse
evadir-me
desta floresta
onde os animais
me devoram
a sombra
e a ti a luz
te consome.

Pudessem
os meus lábios
contar-te
o que pudemos fazer
na casa da colina
inclinados na bruma
afogueados de pássaros
e de desejo
perigosamente
ignorando que pisamos
os supostamente
inacessíveis
territórios
da eternidade.

Se eu pudesse
despertar-te
e deixar de ser
apenas uma pedra dorida
sem vida
à tua beira
eu seria tão duro
tão sólido
e presente
que tu docemente
murmurarias
no búzio do ouvido:

"- Entra pedra de fogo
pelas minhas entranhas,
entra, para que
daqui para frente
eu possa ser
o vulcão eloquente
que na tua vida
entrou para sempre
em erupção."

Lisboa, 1 de Março de 2014
Carlos Vieira





                                            "A visita de Vénus a Vulcano" François Boucher

Fantasia I

Foste tu 
pela manhã
nos teus lábios
o poema que escrevi
ave que contorna inebriada
a planície em chamas
e que sabe de olhos fechados
onde falta extinguir
os nós da solidão
a inquieta tristeza
da ausência
povoamos o silêncio
de esquissos de palavras
como se fossem animais em fuga
pelo rumor 
que o desespero 
dos nossos corpos a enlouquecer
fazem temer
os meus dedos 
acendem em ti ao passar 
demónios esquecidos 
e no teu olhar 
paisagens nunca vistas
e que nem ouvi falar
levas-me contigo
a mergulhar nesse abismo
que há dentro de ti
nesse jardim
onde a tua sofreguidão
alimenta do omnipresente
perfume 
dos meus monstros formidáveis
inacreditáveis fantasia.

Lisboa, 1 de Março de 2014
Carlos Vieira

"Eros e Psiquê, do seu amor nasceu Volúpia"