domingo, 16 de fevereiro de 2014

Escaparates

Escaparates

I

Hoje volto
à banca dos jornais
pasto o olhar
vespertino
pelas primeiras páginas
e fixo-me
nas moedas
do tupperware
de um sem abrigo
ali ao lado
a fazer notícia.

II

O vento balança 
no estendal
dos jornais
guerra e crime
atentado
promiscuidade
desgraça e calamidade
tudo pendurado
escorre
lágrimas e sangue
e mãos sujas
não apenas
de tinta
e tilinta-me
na cabeça
"- Vai uma moedinha!"

III

Todas aquelas
notícias
e reportagens
e assuntos
estão em convivência
pacífica
não necessariamente
por aquela ordem
breves ou proverbiais
minudências
nas entrelinhas
ou em letras garrafais
por momentos
sigo as moedas
nas mãos de rugas
bem pronunciadas
da vendedora de jornais
um pequeno apontamento
das unhas
que parecem garras.

IV

Entretanto 
os transeuntes
passam 
cada vez mais
indiferentes
não sabem a letra
mas sabem 
a música
os jornais
permanecem
ali aguardando
os mansos
leitores
numa pilha
de nervos
para uns é cara
para outros
é coroa.

Lisboa, 16 de Fevereiro de 2014


Carlos Vieira

Ode à disparidade



Díspare,
enamorei-me
por esta palavra
neste tempo morno
de estranha convergência.

Foi á primeira vista
gostar da sua suavidade sensual 
quase " - Dispa-me!"
e nus ali estávamos
convergindo
quase sem nos conhecermos.

Da sua fragmentação se podem
construir outras ideias
com muita força 
divergir
como por exemplo:
"- Não dispare!"
ou essa outra
" - Não faça nenhum disparate!"

Deste potencial de sugestão
de reminiscência
fiquei refém
na defesa intransigente
de uma ideia tão igual
com objectivo
tão díspare
e tão ambivalente.

Lisboa, 16 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira

A Margarida...

A Margarida dorme como um anjo
na fria Madrid o anjo Constança 
a Matilde e a mãe foram à missa
eu aqui em casa em sossego
vivo essa experiência divina
de não estar em nenhum lado
e de andar espalhado
por toda a parte.

Lisboa, 16 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira

UM CAVALO MUITO PEQUENO



Eu criei na minha casa um pequeno cavalo. Ele galopa no meu quarto. É a minha distração.
De início, eu tinha algumas preocupações. Eu me perguntava se ele cresceria. Mas minha paciência foi recompensada. Ele tem agora mais de cinquenta e três centímetros e come e digere uma comida de adulto.
A verdadeira dificuldade vem da parte de Hélène. As mulheres não são simples. Um nada de excremento as indispõe. Desequilibra-as. Elas não são mais as mesmas.
“De um traseiro tão pequeno, eu lhe dizia, pode sair muito pouco excremento”, mas ela... Enfim, tanto pior, ela não está mais em questão agora.
O que me inquieta é outra coisa, são, em certos dias, as súbitas e estranhas transformações do meu cavalo. Em menos de uma hora, sua cabeça infla, infla, seu dorso se encurva, se arqueia, se desfia e tremula ao vento que entra pela janela.
Oh! Oh!
Eu me pergunto se ele não me engana ao se passar por um cavalo; pois mesmo pequeno, um cavalo não se desfralda como uma bandeira, não tremula ao vento mesmo que seja por alguns instantes somente.
Eu não gostaria de ter sido enganado, depois de tantos cuidados, depois de tantas noites que passei a velá-lo, defendendo-o dos ratos, dos perigos sempre próximos, e das febres da juventude.
Às vezes ele se perturba por se ver tão nanico. Ele se transtorna. Ou, atormentado pelo cio, ele dá saltos enormes por cima das cadeiras e começa a relinchar, a relinchar desesperadamente.
Os animais fêmeas da vizinhança atraem sua atenção, as cadelas, as galinhas, as mulas, as ratas. Mas é tudo. “Não, decidem elas, cada uma por si, presa ao seu instinto. Não, não sou eu que devo responder.” E até o momento nenhuma fêmea respondeu.
Meu pequeno cavalo me olha com desânimo, com furor nos dois olhos.
Mas de quem é a culpa? Minha?

Henri Michaux

Traduções: Izabela Leal

Der Tod

DER TOD

A Morte é a gélida noite,
A Vida o dia opressivo.
Escurece, tenho sono,
O dia cansou-me muito.

Onde me deito há uma árvore
Em que canta um rouxinol.
Só canta de puro amor.
Até em sonhos o escuto.


The Uses of Poetry


This was a day when I did nothing,
aside from reading the newspaper,
taking both breakfast and lunch by myself
in the kitchen, dozing after lunch
until the middle of the afternoon. Then
I read one poem by Zbigniew Herbert
in which he thanked God for the many beautiful
things in this world, in a voice so absurdly
truthful, the entire wrecked day was redeemed.


HARVEY SHAPIRO
The Sights Along the Harbor: New and Collected Poems
Wesleyan University Press

Excerto de " O Sono" de Murakami

Desde que deixara de conseguir dormir, começara a perceber até que ponto a realidade podia ser banal. Vendo bem, não passa disso mesmo: é apenas a realidade. Logo, fácil de manusear. O trabalho de casa, a mesma história. Como uma máquina: uma vez que se sabe pô-la a funcionar, depois é só questão de repetir os mesmos gestos. Carregar naquele botão, puxar aquela alavanca. Ajustar o termóstato, fechar a tampa, regular o temporizador.


Haruki Murakami, Sono