sábado, 8 de fevereiro de 2014

ESMOLA


Versos,
em brasa,
como tostões à porta de uma igreja
iluminando as mãos
de um pobre.



4-XI-99
José Ricardo Nunes

O planeta precário


a noite cerrou todas as janelas
alastrou um império de improviso para os
cães sem nome sem dono e atirou
longamente o seu queixo de toneladas até
à mancha
espalmada do rio

e à sua maneira de nos insultar
a tristonha envergadura da sua queixa

as palavras
que usamos
têm  a idade que aparentam

atingidas pela velhice ou pelo descrédito
num alvoroço se oferecem ao abismo

despenhadas rolam
e se confundem com a lava
com a espuma tensa do tempo ainda intacto

para de novo nascerem noutra pátria
mais respirável
ternamente povoar o indómito e triste
hálito
do mais apavorado e generosos bicho

À hora de morrer vai ser necessário
imitar a navegação tumultuosa e resignada
das palavras.

Entre elas e o poeta
um segredo brinca
religioso
trémulo
e imprudente

um segredo amoroso e repugnante

Tu, que de há tanto e tão bem o conheces
melhor te será conservá-lo escondido
até ao momento da surpresa
que a morte branca do medo exige

Cada um de nós, deve ser, não a lei, mas
o galho inopinado e ímpar
o plano imediato da evasão
alucinado e lúcido

Cada um de nós deve ser o momento
de recusar férias à ferida
e de mandar matar todos os parafusos
destronar todas as molas reais
ou irreais
da

respiração artificial

pendurada do tecto
a tua ausência informa: é madrugada
bela notícia confirmada
o céu está menos preto

busto ou explanada
mas só de sombra
a solidão redonda
desta vida parada

não é flor nem bomba
nem página virada
nem a hecatombe
fria e ferial

da charada final
e indesejada !

Falta o indulto especial da tua mão
e tu a dizeres-me, aguda e de assalto:

 "A solidão
é nada."

a cabeça começa por fazer dueto com o teu relógio
crepita sobre a almofada
parece mesmo um gatilho em desuso
uma flecha detida por um hábito lívido

são já os primeiros rumores estremunhados
no tablado das coisas
para onde a luz, como tu, atira os braços
como tu um beijo

enorme e distraída oficina conjugal

é agora a infalível
serpente inofensiva e doméstica do sol
monstro diluviano de capoeira
a farejar
com um aspecto acabrunhado de enfermeiro despedido
a fresta que permita o carnaval

está então na hora?

a cabotagem entre portos diminuídos
tenazmente em circuito cinzento
o tráfego livre dos gestos, enrugado apenas
pelo milagre de um ou outro vizinho mais mumificado
se levar pela mão a cara de brinquedo do filho

a quem acabam por perdoar por não ter ainda convite
e é só entrar

no solfejo nauseante
no cerimonial mercantilista do braço ao peito





josé sebag
surrealismo abjeccionismo
antologia organizada por mário cesariny
edições salamandra
1992




Carta ao filho

  

Não vivas sobre a terra como um estranho
Um turista no meio da natureza.
Habita o mundo como a casa do teu pai.
Crê na semente, na terra, no mar.
mas acima de tudo crê nas pessoas.
Ama as nuvens,
as máquinas,
os livros,
mas acima de tudo ama o homem.
Sente a tristeza do ramo que murcha,
do astro que se extingue,
do animal ferido que agoniza,
mas acima de tudo
Sente a tristeza e a dor das pessoas.
Alegra-te com todos os bens da terra,
Com a sombra e a luz,
com as quatro estações,
mas acima de tudo e a mãos cheias
alegra-te com as pessoas.



Nazim Hikmet, (1902 - 1963) c. 1960.

Soul mates

"People think a soul mate is your perfect fit, and that’s what everyone wants. But a true soul mate is a mirror, the person who shows you everything that is holding you back, the person who brings you to your own attention so you can change your life.
A true soul mate is probably the most important person you’ll ever meet, because they tear down your walls and smack you awake. But to live with a soul mate forever? Nah. Too painful. Soul mates, they come into your life just to reveal another layer of yourself to you, and then leave.
A soul mate’s purpose is to shake you up, tear apart your ego a little bit, show you your obstacles and addictions, break your heart open so new light can get in, make you so desperate and out of control that you have to transform your life"


Elizabeth Gilbert in Eat, Pray, Love

Poesia decente



Estou sentado na sanita
a fazer um poema
maravilhas das novas tecnologias
aguento, aguento
porque a poesia está primeiro
está sempre primeiro
o poema não sai grande coisa
para não dizer que saiu
uma grande bosta
fruto de prisão de ventre
os poemas 
quando não prestam 
deveriam cheirar mal
então as pessoas
até podiam aguentar os poetas
mas a essa sua 
ou minha poesia
puxavam o autoclismo
o último grito da tecnologia 
de um velho mundo.

Lisboa, 8 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira

Um amor ao pequeno almoço



Quero um croissant 
com fiambre sem manteiga
um sumo de laranja
a convergência lúbrica
do teu olhar
na chávena sinto o calor
das tuas mãos
os teus seios firmes
não são para aqui
chamados.

Lisboa, 7 de Fevereiro de 2014


Carlos Vieira

Amor sem tempo



Foi o tempo de amar 
desmesuradamente
do breve equilíbrio 
de dar o passo em frente 
para o abismo
tendo tão perto o paraíso.
Um tempo
entre o deslumbramento
e o juízo
em que os gestos 
e as palavras
se quedavam atordoadas
de encantamento.
O tempo
em que te foste embora 
cansada de esperar 
e foi nessa dor
de te perder
e de não saber amar
que percorri o mundo.
Houve um tempo
em que acabei 
por te reencontrar
nos pequenos fragmentos
da nossa história
na subtileza dos sinais 
em circunstâncias
e inúteis apontamentos.
Agora é apenas
o tempo de amar 
essa memória
de um amor 
para o qual 
nunca tive tempo.

Lisboa, 8 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira


                                           "Mulher de braços cruzados" de Pablo Picasso