quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Soneto dos Vinte Anos


Que o tempo passe, vendo-me ficar
no lugar em que estou, sentindo a vida
nascer em mim, sempre desconhecida
de mim, que a procurei sem a encontrar.
Passem rios, estrelas, que o passar
é ficar sempre, mesmo se é esquecida
a dor de ao vento vê-los na descida
para a morte sem fim que os quer tragar.
Que eu mesmo, sendo humano, também passe
mas que não morra nunca este momento
em que eu me fiz de amor e de ventura.
Fez-me a vida talvez para que amasse
e eu a fiz, entre o sonho e o pensamento,
trazendo a aurora para a noite escura.

Fazer o amor

Pela minha parte, experimentava, para além do prazer físico e absolutamente real que me proporcionava o amor, uma espécie de prazer intelectual ao reflectir sobre ele. As palavras «fazer amor» possuem uma sedução própria, muito verbal, quando isoladas do seu sentido. O verbo «fazer», material e positivo, unido à abstracção poética da palavra «amor», encantava-me, embora sempre me tivesse referido anteriormente a esta expressão sem o mínimo pudor e sem me dar conta do seu sabor.


Françoise Sagan, Bom dia Tristeza
O POEMA

O poema é um exercício de dissidência, uma profissão de incredulidade na omnipotência do visíveis, do estável, do apreendido. O poema é uma forma de apostasia. Não há poema verdadeiro que não torne o sujeito um foragido. O poema obriga a pernoitar na solidão dos bosques, em campos nevados, por orlas intactas. Que outra verdade existe no mundo para lá daquela que não pertence a este mundo? O poema não busca o inexprimível: não há piedoso que, na agitação da sua piedade, não o procure. O poema devolve o inexprimível. O poema não alcança aquela pureza que fascina o mundo. O poema abraça precisamente aquela impureza que o mundo repudia.

José Tolentino de Mendonça



Nas fotografias...

Nas fotografias mais antigas
ainda uso óculos: memória
das lentes riscadas e paninhos
de flanela. Um dia as dioptrias
desapareceram («óptimo», disse
o oftalmologista) e fiquei a ver
melhor ao longe – mas não tão
longe que consiga alcançar, hoje,
o que via quando as hastes me
magoavam atrás das orelhas.

José Mário Silva, Luz Indecisa

A queda de um anjo



Choveu interruptamente 
durante todo o dia
agora descortino-te Pietá
de pulsos cortados
e mãos vazias 
que deixaste
tombar o corpo 
do sonho agonizante
por isso correm
abundantemente
lágrimas de sangue
os retângulos de vidro
da janela.


Lisboa, 6 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira

"Pietá" de Vincent Van Gogh

Vai ver se chove!



Cessa a chuva
e a espera
no vão das portas.

XXX

Caiem pingos
das árvores
e escorre
pelos troncos
estertores de água.

XXX

Os caminhos
estão intransitáveis
as crianças
chapinham
nas poças
não vão a lado nenhum.

XXX

Oiço as aves
que sacodem
as asas antes do voo.

XXX
Ouve-se o regato
cristalino
mais longe
menos límpido
depois da chuva.

XXX

No cabide pendura-se
o manto
e volta a ouvir-se
o esperanto  
da chuva
que volta a tamborilar
em braille
no vidro da janela.

Mesmo assim
vou ver se chove.

Lisboa, 6 de Fevereiro de 2014

Carlos Vieira

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Para a Helena...

Era por volta dos anos 80, fazia umas escapadelas a Tróia, de fim de semana, na noite que escrevia 
a uma namorada,"Palavras leva-as o vento!".
O vento levou-me, a roupa do estenda. Eu fiquei só então com a namorada, as palavras e com tudo aquilo
com que havia chegado ao mundo.

Lisboa, 5 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira