quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

A queda de um anjo



Choveu interruptamente 
durante todo o dia
agora descortino-te Pietá
de pulsos cortados
e mãos vazias 
que deixaste
tombar o corpo 
do sonho agonizante
por isso correm
abundantemente
lágrimas de sangue
os retângulos de vidro
da janela.


Lisboa, 6 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira

"Pietá" de Vincent Van Gogh

Vai ver se chove!



Cessa a chuva
e a espera
no vão das portas.

XXX

Caiem pingos
das árvores
e escorre
pelos troncos
estertores de água.

XXX

Os caminhos
estão intransitáveis
as crianças
chapinham
nas poças
não vão a lado nenhum.

XXX

Oiço as aves
que sacodem
as asas antes do voo.

XXX
Ouve-se o regato
cristalino
mais longe
menos límpido
depois da chuva.

XXX

No cabide pendura-se
o manto
e volta a ouvir-se
o esperanto  
da chuva
que volta a tamborilar
em braille
no vidro da janela.

Mesmo assim
vou ver se chove.

Lisboa, 6 de Fevereiro de 2014

Carlos Vieira

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Para a Helena...

Era por volta dos anos 80, fazia umas escapadelas a Tróia, de fim de semana, na noite que escrevia 
a uma namorada,"Palavras leva-as o vento!".
O vento levou-me, a roupa do estenda. Eu fiquei só então com a namorada, as palavras e com tudo aquilo
com que havia chegado ao mundo.

Lisboa, 5 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira


DIZIAS QUE GOSTAVAS (2003)



Dizias que gostavas de poemas.
Escrevi-te, numa tarde, mais de cinco.
São muito bonitos, disseste,
hei-de mostrá-los ao meu namorado.
Nunca mais confiei nos versos
nem no gosto feminil.


de "Vista de Um Pátio seguido de Desordem", Relógio d'Água,

TERRITÓRIO




TERRITÓRIO


Um céu de sombras
vermelho por dentro
clareira solta
sobre o mar
O sonho como um galo branco
iluminado de noite
para que os ossos da névoa
ganhem contornos de pele
Um pássaro vibrando
na solidão de cada ferida
O granítico ódio
destas ruas sem rostos
deste pranto sem corpo
de país castigado.

José Manuel de Vasconcelos
In "A Mão na Água que Corre"

De vez em quando...



De vez 
em quando
parece-me ouvir
a lengalenga
da minha avó
e sei que 
entre os seus dedos
brilhavam contas
de âmbar
e a alegria da fé
ao colo
da sua serena
bondade
eu adormecia.

Lisboa, 5 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira

Pequenos conflitos de José Guerra

Pequenos conflitos de José Guerra

José Guerra, as pessoas da aldeia mantinham uma distância, não pela infeliz coincidência do nome, mas porque nunca se sabia quando podia atacar, se alguém se aproximava da sua propriedade, já para não falar de sem querer ou por desconhecimento a poder pisar. Aí, era uma carga de trabalhos. 

Não dava o mínimo sinal de condescendência, ficava ali, naquele círculo do orgulho ferido, naquela solidão animal, de fera encurralada.

Podia por mero acaso, fazer uma aliança estratégica, no entanto mantém-se ali de garras afiadas
e cara de poucos amigos, diria de nenhuns amigos. 

Vivia, básicamente, do que produzia e de pequenas compras que fazia, nas raras visitas à mereceria, onde rosnava qualquer coisa parecida com palavras e atirava umas tantas moedas.

O azedume dos anos sobrepostos, endureceu-lhe o olhar, estreitou-lhe os lábios, não fosse escapar-lhe um improvável sorriso e as palavras tinham de sair-lhe da boca, como arestas vivas e como pedras polidas. 

Nas raras saídas que fazia do seu covil, deixava que caísse o crepúsculo e ía algures a contar os troncos do pinhal que ainda lhe pertenciam e senão teria havido alteração dos marcos.

Olhava da janela, entre as lâminas do estore com seu olhar afiado. De paz, o único sinal é o fumo branco que numa pequena coluna se escapa da chaminé.

A família já há muito que não tem contacto com ele, terá uns longínquos familiares na zona de Odemira, no entanto, ele há décadas que se mantém o mais distante possível da humanidade.

Algures quando era miúdo e andava a juntar as primeiras letras, recordo-me de um único sinal de fraqueza, não sei porque razão, uma folha de papel onde tinha feito algumas letras, amarfanhado, foi-lhe parar às mãos e percebi como o seu olhar sorria, depois olhou para um lado e para outro não fosse ser apanhado, a decifrar a humanidade.

Soube mais tarde que tinha vindo da I Guerra gazeado e que aquela casa continuava a ser a sua trincheira, nós, nós éramos todos alemães.

Amarfanhadas eram as cartas que chegavam à frente de combate e que a todos ajudava a acender a  fogueira ou a passar o Inverno gelado.

Lisboa, 5 de Fevereiro de 2014

Carlos Vieira