segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Apardalados

Apardalados

Um casal de namorados
atónitos
entrelaça as mãos
aves decapitadas.

Pousavam sobre 
as mesas 
as chávenas de café
arrefeciam, 
intercaladas
por beijos intemporais.

Olham-se
como se fosse
a primeira vez 
que se viam 
reinventam a narrativa
das caricías breves
e dos pequenos gestos. 

Em tempo crise
mais ousam os pardais 
ao aproximarem-se
e ao debicarem pelo chão
à volta deles
as migalhas de amor
e de pão

Por pouco
cagam-lhe em cima
o que bam vistas as coisas
não é poético
nem é bonito.

Lisboa, 3 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira


Lisboa, 3 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira

Esplanadas

Sempre tive 
uma certa atração 
por esplanadas
e por noites de verão
não necessáriamente 
pela mesma ordem
sobretudo observar 
as comédias sexuais
que elencos amadores
ali representam
espontaneamente.

Lisboa, 3 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira

Está quase tudo bem!


Todos os dias, o via chegar com o seus, 70 anos, a ele e ao seu casaco coçado quadriculado, tinha uma sua camisola de borbotos que parecia confortável com umas renas a passearem-lhe ao nível do peito, o colarinho estava coçado e tinha pronunciadas rugas de expressão na face.
Em cima das quatro horas, os seus olhos azuis enfrentavam o relógio de feira, descaído, na parede do estabelecimento, aparecia aquele rosto magro e anguloso, uma expressão gentil.
Se tiver vaga, ir-se-á sentar na mesma cadeira, estrategicamente, colocada com vista para a entrada e o empregado perguntava-lhe: “- Está tudo bem e é o mesmo de sempre!” e ele via responder sorrindo, serenamente: “- Está quase tudo bem, é isso mesmo!”. Demorará cerca de 25 minutos a comer meia torrada e a beber um galão escuro.

Lisboa, 3 de Fevereiro de 2013
Carlos Vieira


O investigador de café


Senta-se no café, muito compenetrado, aparentemente sereno. Usa uns óculos com umas consideráveis dioptrias e cabelo naturalmente despenteado.
Num reflexo, constato que lê um livro em inglês grosso e encadernado. Consegue alhear-se das mesas contíguas, da ensurdecedora máquina café e da louça da cozinha. Heroicamente, da despudorada conversa de duas vizinhas, acerca das poucas-vergonhas que se passam no seu prédio, também não o impressionam.
Continua ali impávido, sem uma ruga no sobrolho, no seu vestuário confortável e nada formal, sublinhando com seu lápis Rotring algumas passagens, de vez em quando, talvez de vinte em vinte minutos, levanta a cabeça como se fosse um mergulhador que vem respirar à superfície.
Lisboa, 3 de Fevereiro de 2014

Carlos Vieira

café da manhã



naquele solitário ritual
bebe o café amargo
esquece-se
de remexer a normalidade
com pouco açúcar
em que usa
a colher de prata

Lisboa, 3 de Fevereiro de 2014

Carlos Vieira

Irreverente...

Irreverente
com o coração ao pé da boca
foi visceral a loucura que o arrebatou
nos últimos tempos.
Nesse dia foi enorme a libertação interior,
não regressou a casa.
Foi preso por instigação 
por violência no local de trabalho.
Não aguentou 
e suicidou-se na cadeia,
tal deu origem a grande especulação.
Houve os que defenderam
que foi por vergonha,
outros que a ave do campo
não suportava capoeira.

Lisboa, 3 de Fevereiro de 2014

Carlos Vieira

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Pergunto-lhe se é costume estar-se triste como nós estamos


Ele diz que é porque fizemos amor durante o dia, no momento em que o calor é maior. Diz que é sempre terrível depois. Sorri. Diz: quer nos amemos, quer não, é sempre terrível. Diz que há-de passar com a noite, assim que ela chegar. Digo-lhe que não é só por ter sido durante o dia, que está enganado, que estou numa tristeza que já esperava e que só vem de mim. Que sempre fui triste. Que vejo essa tristeza também nas fotografias em que sou muito pequena. Que hoje essa tristeza, reconhecendo-a embora como a que sempre tive, poderia dar-lhe o meu nome, de tal modo se me assemelha.


Marguerite Duras, O Amante