sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Sequela da Bela Adormecida



“-Minha senhora
queria 2kgs
de maçãs
daquelas ali
da bruxa má.”
A senhora
responde:
“Pois muito bem.
E senão é indiscrição
onde é que o Sr.
entra na história!”

Lisboa, 24 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira


Outro final para a história


Sagaz a raposa
espreita
pelo canto do olho
a tartaruga
que sabendo
da história
optou
por um atalho.

Lisboa, 24 de Janeiro de 2014

Carlos Vieira

Em crescendo



Chamo por ti
num murmúrio
um frémito
quase uma palavra
que não perturba
e afeta
o deslumbramento
da tua serenidade
nem precipita
as arritmias
e o pensamento.

Cicio
ao teu ouvido
roça
o lóbulo
meu lábio
que sacia
a sede
na lágrima
que traiu
teu fogo interior.

Avisto
o oásis
no deserto
não te movas
não fales
que eu irei
descalço
pé ante pé
corpo a corpo
desatar
a dor
que em ti teceu
o silêncio.

Depois
ao ouvir-te
gemer
ao deslisar
da carne
sinto-te
a recuperar
o tempo
morder
o nome
um insulto
num grito
que é quase
um sismo
em forma
de poema.

Lisboa, 24 de Janeiro de 2014

Carlos Vieira

Foto de autor desconhecido

Ser vivo nem sempre dá muito trabalho



Quando chego ao local de trabalho
todos me dizem bom dia
os peixes vermelhos no tanque
em uníssono
muito superficiais.
Os pássaros de cantos distintos
mas que não distingo pelo canto
na sua pose altaneira
e pouco sustentada.
As lagartixas apressadamente
pois quem tem rabo tem medo.
Os gatos com o seu olhar distante
e aproveitando para lamber a pata
a miar baixinho
“ Este gajo não é de fiar”.
Dois cães rafeiros de alegria hesitante
denunciada na cauda
com tendência para enroscar.
As árvores no seu rumor austero
de quem tem um posicionamento
sólido e inamovível
sem ter mais nada para fazer.
E “prontos”
assim começa dia de trabalho
rodeado destes seres vivos
sem nada para fazer.

Lisboa, 24 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

Sala de Urgências



sala de espera
das urgências do hospital
5h da manhã uns com cara de caso
outros com caso

os doentes e os acompanhantes
aparentemente
não se distinguem
só com olho clínico

distingo os médicos
por carregarem ao pescoço
o poder de nos escutar
o coração

agora
o pessoal já não
anda todos de branco
mas ainda tem
aqueles gestos de anjos com sexo
o que me agrada

não chegou
nenhuma ambulância histérica
sobretudo com este frio
não dá jeito nenhum 
estar doente ou ter acidentes

passou uma enfermeira
sorridente e com a segurança
de barco que atravessa todas as tormentas
os doentes não tem outro remédio 
de que se lhe entregar
"Não, não estou eu que estou doente, 
é a minha mulher!"

sempre tive 
alguma admiração pelas macas
carrinhos de esferas onde se anda deitado
até que parti uma perna 
e esfumou-se o sonho 
em 5h de pesadelo
a 5 palmos do centro de gravidade

já devia ter o brevet 
das urgências
inscrição, triagem, médicos estremunhados,
exames complementares de diagnóstico
sonos e sonhos perdidos

fico anestesiado
só do cheiro a medicamentos
e pela iluminação etérea
viajamos nos corredores estreitos
como dentro de nuvens cirroestratrus
e o céu já ali

deixei o hospital
e fica-me aquela sensação longínqua
dos rostos dos médicos, 
dos quase médicos
dos paramédicos 
a desvanecerem-se
"Está com outro ar! 
Está com outro ar!"
eu que sofro de asma 
e que sou apenas 
o acompanhante 
de um familiar


Lisboa, 24 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira




Numa passagem de nível...

Numa passagem de nível
encontrei o meu amor,
enquanto o comboio
passava eu estremeci,
jamais nos cruzamos.

Lisboa, 23 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Observo-te ao espelho...

Observo-te pelo espelho
o teu olhar de punhal
sem misericórdia
e insensatez felina
de puro instinto animal
volto-me para ti
uma breve caricía
abraço-te e eis-te de novo
menina apenas menina.

Lisboa, 23 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira