sábado, 25 de janeiro de 2014

Os cães gerais...



"os cães gerais ladram às luas que lavram pelos desertos fora,
mas a gota de água treme e brilha,
não uses as unhas senão nas linhas mais puras,
e a grande Constelação do Cão galga através da noite do mundo cheia de ar e de areia
e de fogo,
e não interrompe ministério nenhum nem nenhum elemento,
e tu guarda para a escrita a estrita gota de água imarcescível
contra a turva sede da matilha,
com tua linha limpa cruzas cactos, escorpiões, o ar cego:
e queres apenas
aquela gota viva entre as unhas,
enquanto em torno sob as luas os cães cheiram os cus uns aos outros
à procura do ouro"

Herberto Helder, Servidões, Assírio & Alvim, Maio de 2013, p. 68.

Novela curta

NOVELA CURTA



O meu amigo Moreira mandou uma vez construir, num quintal velho que tinha, uma casa elegante para um cão. Encarregou d'isso um mestre de obras, que, atraído pela estranheza do assunto e pela suposta loucura do criador do proposito, construiu uma espécie de chalet digno de ser pago, sem sobras, por alto preço.
Quando a casa para o cão estava pronta, o Moreira compareceu e aprovou. Elogiou o mestre de obras, e foi-se embora, meditando.
Dias depois, quando o mestre de obras apareceu com a conta, o Moreira pediu-lhe que o acompanhasse ao quintal velho. Chegados ali, disse-lhe com enternecimento, apontando para a casa do cão.
- Olhe, mestre, meta a conta ali dentro. Ela é que é o cão.

Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

Os meus fantasmas

Uma caneta
que não escreve
no momento
que o poema
aperta

Cães a ladrar
para espantar a noite
que aperta contra
a caneta

que não escreve

na noite
onde cães ladram
para espantar
a caneta
que não escreve
o poema

que aperta
que me aperta

E a caneta
que não escreve
E os cães a ladrar
para espantar
a noite
para espantar
a caneta que mesmo

assim não escreve
o poema
que aperta


Manuel A. Domingos, Teorias

Seria primeiro...


Seria primeiro podridão fétida, depois uma pasta pegajosa, no fim uma poeira que se não distinguiria do outro pó. Aquilo por que éramos, sentíamos, conhecíamos, existíamos, nos podíamos tornar um corpo triunfante, acabava connosco, não nos sobrevivia: apenas durava mais o cabide daquilo, sem que sequer pudesse aguentar-se em pé. Revi o esqueleto que havia no liceu, pendurado numa haste de ferro, como um enforcado, e com os ossos presos uns aos outros por araminhos. E a vida era isso: a duração daquele conjunto de carne, pela qual a nossa consciência, as nossas faculdades, o nosso «eu» existia.

Sinais de Fogo, Jorge de Sena 

Ver-te nas minhas mãos


Ele pousou
a mão
no teu ombro nu.
Ela sorriu
interiormente.
Ele compôs
com os dedos
o teu cabelo
desgrenhado.
Ela cruzou
sua mão
sobre o peito
e pousou
sobre a dele
que não via,
nas suas costas.
Ele segredou-lhe
algo ao ouvido
e não viu,
a progressão
da alegria
no rosto dela,
não podia ver.
Ela riu-se
e virou-se
de súbito
e tapou-lhe
a boca.
Ele beijou-lhe
os olhos
ternamente.
Ela abraçou-o
e ele levantou-a
do chão,
numa versão
de amar,
muito táctil
e substantiva.
Eles amavam-se,
o que era
perceptível,
para qualquer um
e, talvez por isso,
estavam
mais cegos.
Apenas
o seu cão guia
os observava
e gania
não se sabe,
se de impaciência
ou de contentamento.

Lisboa, 25 de Janeiro de 2014

Carlos Vieira

Excerto de Virgínia Woolf

"Sexta, 15 de novembro [1918]
[T.S. Eliot] admira imenso Mr. Joyce. Mostrou-nos uns três ou quatro poemas para lhe darmos uma vista de olhos – o fruto de dois anos de trabalho, visto que ele trabalha o dia inteiro num banco e, segundo o seu modo racional de pensar, acha que o trabalho regular faz bem às pessoas de constituição nervosa. Fiquei mais ou menos consciente de um seu sistema, muito intricado e altamente organizado, de crença poética; devido às suas cautelas, e ao seu cuidado excessivo na escolha da linguagem, não descobrimos muita coisa sobre essa crença. Acho que ele é um adepto das “frases vivas” e acredita que há uma diferença entre estas e as frases mortiças; acha que se deve escrever com um cuidado extremo, respeitar sintaxe e gramática; e, assim, fazer esta poesia nova florir dos estames da mais antiga poesia."
Diário de Virginia Woolf, tradução de Maria José, Bertrand de Portugal, p. 132

Pequeno excerto de "O Fio da Navalha"

Neste mesmo dia em Paris, no ano de 1874, nascia Somerset Maugham.

"– Está muito apaixonada por Larry?
– Vá para o diabo. Nunca amei mais ninguém em toda a minha vida.
- Então porque casou com Gray?
- Tinha de casar com alguém. Ele era doido por mim e a minha mãe queria que eu casasse com ele. Toda a gente me dizia que era uma sorte ter-me livrado do Larry. E eu gostava muito do Gray; ainda gosto………. – Penso que realmente não o amava, mas uma pessoa passa bem sem o amor. Lá no fundo era pelo Larry que eu suspirava………."