terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Retrato do homem bom




Grita nele
um secreto impulso
o esboço de raiva
da raiz  que habita
submersa 
sob a pele
na véspera
da explosão
dos átomos
no seu rumo
à maior solidão
fere-se
nos estilhaços
do tempo
no gume
da mácula
regressa
ao esquisso
precário
entre o princípio 
do mundo
e o sono
dos justos
dentro de si
o vulcão
cauterizou
com seus lábios
ardentes
as chagas vivas
da sua vida 
agora indeléveis
e desperta
todas as dores 
dos homens 
que lhe revolvem
as entranhas.


Cresceu
nesse interlúdio
num berço
de rudimentos
de ternura 
e rendimento
mínimo
e tecido escasso
de gestos contidos
na dúvida
e na alegria breve
da benevolência
que no seu rosto
enrugado
ainda aflora
e depois esquece
perante a insistência
do silêncio
ao fundo do túnel
a luz bruxuleante
de um futuro
que esmorece
enquanto
a dor vincada
no seu peito
do sonho
onde cabem
todos os homens
desmesurado
cresce.


Lisboa, 17 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira



                                             Solitary Man, de Linda Burgess

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Sei de onde vem o mar



Os gonzos da porta
a ressoar.
A exclamação da tranca
que se levanta.
A chave
é um pássaro
que entra
na escura solidão.
Poderia haver
um cheiro acre
a maçãs,
irrompendo,
apoderam-se de nós
como se fosse um
cão que regressa da infância.
A luz
vai abraçar
os móveis e as louças,
no teu mundo
tudo está em ordem.
Vi as ondas cintilantes
do teu olhar
dirigirem-se para mim.
Enquanto
entrava dentro de casa,
dentro de ti,
o mar
fugia pela janela.

Lisboa, 13 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira

                                        " Reclinig Female With a Cat" Pintura de Max Pechstein

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Conluio de cores



Todos os anos
o mesmo tapete dourado
de folhas
sobre o musgo
à superfície do tanque
o ouro coalhado
que caiu das faias
e ontem
por cima da filigrana
das horas
um fino lençol
de geada
sobre o muro
do esquecimento
ergue-se o sol
vermelho
leio outra vez
nos teus lábios
entreabertos
o ocaso
da conspiração
que em saliva
se dilui
e fica depois
atravessada
na garganta.

Lisboa, 12 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Contrabandear



Fui
à feira
e no ângulo
morto
dos panos
das tendas
teu rosto
envolto
num lenço
de seda
falsa
escondia
o tráfico
de um olhar
sem preço
preso
a um brinco
de pérola.


Lisboa, 10 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira





Rapariga com brinco de pérola de Johannes Vermeer

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Calafrios

Calafrio
é a palavra
que agora desce 
pelo teu dorso
um súbito risco 
um rio breve
que contorna
e acontece
na orla
do teu ombro
enquanto
no teu leito
se ergue
em deltaum silêncio
de fogo solto
que escala
e consome
o frémito 
do vazio
a transbordar
o sono
das margens
sequiosas
do teu peito
onde se oculta
o rouxinol
e qualquer palavra
na tua voz
é um calafrio
suave a morder
de sal
o lânguido
vértice
reencontro
no vórtice
loquaz
da tua foz.



Lisboa, 10 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira


                       Jean-Antoine Houdon, La Frileuse / Winter (The Shivering Girl), 1783, marble.  Musée Fabre, Montpellier

sábado, 7 de dezembro de 2013

Pequenos feitos



Lembro-me que cavalgávamos as encostas, de sabermos todas as árvores de fruto pelo caminho, de dançarmos com as videiras e mergulharmos no Pego do Gaivoto, de “armarmos aos pássaros” nas Lameirinhas, da primeira única vez que vi e fui mordido por uma sanguessuga, naquele tempo e idade tenho registado essa aventura incomensurável, enquanto apanhávamos caracóis para dar aos patos.
Na minha memória tenho bem presentes, as abelhas saindo, repentinamente, de buracos do tijolo do terraço da tua casa e aqueles pequenos seres atacarem furiosas, os pequenos seres que nós éramos, depois o brilho do sol nas lâminas frias das facas de cozinha, a aplacarem a dor do ferrão das suas picadas, sinais inequívocos das suas investidas bem-sucedidas.
Sei da tua pasteleira antiga somente com os aros, do chinfrim que fazia pelo meio da aldeia, sem travões, naquela altura passava ali um carro de hora a hora, quando acabámos os dois e a bicicleta na lagoa e sei da enorme sova que levei, por ter assim sujado o fato de domingo.
Recordaste dos nossos ataques à escola primária e de nos apoderarmos dos cadernos arquivados dos alunos, troféus libertados do sistema, vitória sobre as reguadas da professora, no sótão da minha casa, recordo-me daquela caligrafia dos primeiros tempos e nunca me esqueci do aroma da tinta permanente, equilibrando-se periclitante nas linhas paralelas das folhas e dos números aprisionados nos cadernos quadriculados.
Lembras-te daquelas noites, em que distribuíamos o caldo de morcela aos vizinhos, uma mão no recipiente, outra para apanharmos pirilampos, a cabeça no céu estrelado e as fintas e saltos às poças de água.
Sei que um dia, tu, as tuas irmãs e toda a família desapareceram, rumo a uma aventura maior e apenas fiquei com todas estas memórias, recordações como se fossem jardins suspensos, de uma qualquer Babilónia, onde nas noites agora mais longas da aldeia, a todos vos revia, imaginando.
Certo é que as aventuras deixaram de ser as mesmas e tu foste talvez naquele tempo, o irmão mais velho, para junto de quem o meu pai foi meses mais tarde, tu agora tinhas encontrado nas trincheiras abandonadas da segunda guerra mundial, outras brincadeiras que me irias contar quando regressasses, no próximo Verão.
Já me esquecia que hoje fazes anos e depois de tantos anos meu amigo e primo Artur, não há maior alegria que podermos e termos tantos feitos para contar.
Lisboa, 7 de Dezembro de 2013

Carlos Vieira

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Canção de despertar para a Consti



Bebo da memória,
na margem
dos seus lábios,
que contornam
o fogo, fogo, fogo
e a água, água, água,
a solidão
das primeiras palavras
que reconheço
porque dizem
o puro sabor
dos elementos
depois da navegação
no seu sorriso
emergente.

Dos teus caracóis louros
em catarata
evadiam-se peixes
na sua ânsia
de delatar segredos
e construir
o país dos sonhos
dos mais subliminares
materiais
arquitectados
em clareiras
de fogo, fogo, fogo
e grutas
de água, água, água
de onde espreitavam
os teus olhos
pérolas incrustadas
pequenos animais indecisos.

Lembro-me
que tinhas uma
“t-shirt” amarela
e umas jardineiras
aos quadrados
nesse tempo
brincavas com o fogo
com o mesmo à vontade
com que hoje
se brinca com a fome
e no lusco-fusco
de um fim de tarde
bebes um copo
de água
e a noite vinha
de mansinho
comer-te à mão
tu depois
tiveste medo
da tua própria sombra.

Nos teus olhos grandes
de criança
perpassavam
constelações
legendas
que remetiam
para animais mitológicos
sinais
de fogo, fogo, fogo
e para o doce murmurar
e insistência
de água, água, água
anunciando o rumor de outras
galáxias.

Desviavas
o imenso caudal da água
e de dor
e levavas o teu pequeno mundo
à trela
com tuas pequenas mãos
e delas em concha
nasciam os mares interiores
e a correria imprudente
dos rios intrépidos
na tua diligência
de menina
acompanhava-os
com o olhar fulgurante
de fogo
e de imprevistos
e uma sôfrega
sede de vida
sem julgamento.

Lisboa, 3 de Novembro de 2013
Carlos Vieira