terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Calafrios

Calafrio
é a palavra
que agora desce 
pelo teu dorso
um súbito risco 
um rio breve
que contorna
e acontece
na orla
do teu ombro
enquanto
no teu leito
se ergue
em deltaum silêncio
de fogo solto
que escala
e consome
o frémito 
do vazio
a transbordar
o sono
das margens
sequiosas
do teu peito
onde se oculta
o rouxinol
e qualquer palavra
na tua voz
é um calafrio
suave a morder
de sal
o lânguido
vértice
reencontro
no vórtice
loquaz
da tua foz.



Lisboa, 10 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira


                       Jean-Antoine Houdon, La Frileuse / Winter (The Shivering Girl), 1783, marble.  Musée Fabre, Montpellier

sábado, 7 de dezembro de 2013

Pequenos feitos



Lembro-me que cavalgávamos as encostas, de sabermos todas as árvores de fruto pelo caminho, de dançarmos com as videiras e mergulharmos no Pego do Gaivoto, de “armarmos aos pássaros” nas Lameirinhas, da primeira única vez que vi e fui mordido por uma sanguessuga, naquele tempo e idade tenho registado essa aventura incomensurável, enquanto apanhávamos caracóis para dar aos patos.
Na minha memória tenho bem presentes, as abelhas saindo, repentinamente, de buracos do tijolo do terraço da tua casa e aqueles pequenos seres atacarem furiosas, os pequenos seres que nós éramos, depois o brilho do sol nas lâminas frias das facas de cozinha, a aplacarem a dor do ferrão das suas picadas, sinais inequívocos das suas investidas bem-sucedidas.
Sei da tua pasteleira antiga somente com os aros, do chinfrim que fazia pelo meio da aldeia, sem travões, naquela altura passava ali um carro de hora a hora, quando acabámos os dois e a bicicleta na lagoa e sei da enorme sova que levei, por ter assim sujado o fato de domingo.
Recordaste dos nossos ataques à escola primária e de nos apoderarmos dos cadernos arquivados dos alunos, troféus libertados do sistema, vitória sobre as reguadas da professora, no sótão da minha casa, recordo-me daquela caligrafia dos primeiros tempos e nunca me esqueci do aroma da tinta permanente, equilibrando-se periclitante nas linhas paralelas das folhas e dos números aprisionados nos cadernos quadriculados.
Lembras-te daquelas noites, em que distribuíamos o caldo de morcela aos vizinhos, uma mão no recipiente, outra para apanharmos pirilampos, a cabeça no céu estrelado e as fintas e saltos às poças de água.
Sei que um dia, tu, as tuas irmãs e toda a família desapareceram, rumo a uma aventura maior e apenas fiquei com todas estas memórias, recordações como se fossem jardins suspensos, de uma qualquer Babilónia, onde nas noites agora mais longas da aldeia, a todos vos revia, imaginando.
Certo é que as aventuras deixaram de ser as mesmas e tu foste talvez naquele tempo, o irmão mais velho, para junto de quem o meu pai foi meses mais tarde, tu agora tinhas encontrado nas trincheiras abandonadas da segunda guerra mundial, outras brincadeiras que me irias contar quando regressasses, no próximo Verão.
Já me esquecia que hoje fazes anos e depois de tantos anos meu amigo e primo Artur, não há maior alegria que podermos e termos tantos feitos para contar.
Lisboa, 7 de Dezembro de 2013

Carlos Vieira

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Canção de despertar para a Consti



Bebo da memória,
na margem
dos seus lábios,
que contornam
o fogo, fogo, fogo
e a água, água, água,
a solidão
das primeiras palavras
que reconheço
porque dizem
o puro sabor
dos elementos
depois da navegação
no seu sorriso
emergente.

Dos teus caracóis louros
em catarata
evadiam-se peixes
na sua ânsia
de delatar segredos
e construir
o país dos sonhos
dos mais subliminares
materiais
arquitectados
em clareiras
de fogo, fogo, fogo
e grutas
de água, água, água
de onde espreitavam
os teus olhos
pérolas incrustadas
pequenos animais indecisos.

Lembro-me
que tinhas uma
“t-shirt” amarela
e umas jardineiras
aos quadrados
nesse tempo
brincavas com o fogo
com o mesmo à vontade
com que hoje
se brinca com a fome
e no lusco-fusco
de um fim de tarde
bebes um copo
de água
e a noite vinha
de mansinho
comer-te à mão
tu depois
tiveste medo
da tua própria sombra.

Nos teus olhos grandes
de criança
perpassavam
constelações
legendas
que remetiam
para animais mitológicos
sinais
de fogo, fogo, fogo
e para o doce murmurar
e insistência
de água, água, água
anunciando o rumor de outras
galáxias.

Desviavas
o imenso caudal da água
e de dor
e levavas o teu pequeno mundo
à trela
com tuas pequenas mãos
e delas em concha
nasciam os mares interiores
e a correria imprudente
dos rios intrépidos
na tua diligência
de menina
acompanhava-os
com o olhar fulgurante
de fogo
e de imprevistos
e uma sôfrega
sede de vida
sem julgamento.

Lisboa, 3 de Novembro de 2013
Carlos Vieira

domingo, 1 de dezembro de 2013

Aparição



Ali estavas
ao cimo das escadarias
da manhã
como se viesses ver o mar
vestias aquelas jeans
de subir às árvores
de apanhar os frutos
e tinhas duas tranças
uma de cada lado
havia uns segundos
em que ainda encadeada
a tua a mão de pássaro
voava da maçaneta
e pousava no sobrolho
avançavas depois
destemida
um passo atrás do outro
a tua blusa branca
desfraldada
dois seios cúmplices
adivinhavam-se
firmes
seguias
pelo trilho de luz
que os carvalhos
seculares
também dois
também firmes
haviam coado
apenas um rafeiro
a destoar
mordia-lhe as canelas
ladrava
prendia-a à terra
e lhe deu
um pouco de sangue
de ferida
de poesia
e o espectro enrubesceu.

Lisboa, 1 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira

Imagem de autor desconhecido




sábado, 30 de novembro de 2013

Pequenas história com um gato de permeio



A apanhar o sol
um gato no telhado,
dentro de casa
afiam-se-lhe as garras.

O gato corre
atrás do novelo
e agora, apanhar
o fio da meada!

O gato enrolado
dormita
sobre o sofá,
agita-se-lhe a cauda.

Entre as pernas
um gato amarelo
distende-se,
ela apenas sorri.

O gato mia
entre o pingo de água
da torneira,
tu espreguiças-te.

O bicho ronrona,
range a porta
na insónia
e olha por ti.

Aqui há gato,
explicar-te-á 
o jardim das sombras
mas que sabe ele
do beijo das estrelas  ?

Lisboa, 30 de Novembro de 2013
Carlos Vieira



Pintura de autor desconhecido

terça-feira, 26 de novembro de 2013

“E o Porto aqui tão perto”



I

Hoje acordo
e o Porto
sinuoso
insinuante
ali por perto
cidade
de recato
de recantos
com epiderme
de granito
e alma
maior
que o socalco.


“Ainda não deu hora nenhuma!" de Fernando Pessoa, pintura de Nadir Afonso

II

Espera-te
generosa
do tamanho
dos abraços
de todas
as suas pontes,
a gaiola
mágica
de S. Luís
replicando
pardais subtis
metálicos
e a dissonância
dos carris
e das viagens
virá depois
a da Arrábida,
emoldura
deslumbrados
salgueiros
acordeões
de neblina
inventam
o tango
no tráfego
das manhãs.


“Ponte de S. Luís” de Nadir Afonso

III

Entre ambas
espera-te
a silhueta discreta
o amante
improvável
no Cais da Ribeira
tu erecta
um pouco distante
luminosa
articulas
o inábil instante
quase ao de leve
brejeira
inclina-se o ciúme
do anúncio
Porto Sandeman
e as casas
para te ver passar
já demente
de braço dado.




“A cidade e os seres” de Nadir Afonso


IV

Espera-vos
à Alfândega
tira o pé
da embraiagem
tão inquietos
de tanto
contrabando
de desejos
a maresia
dos seus cabelos
desgrenhados
acentuando
a afogueada
transação de beijos
na Foz
a barra fechada
não resistiu
a um amor subversivo
a resvalar
no cabedal
do banco traseiro
e já ninguém vê nada
entre a lucidez
e a loucura
dos vidros embaciados.



“Os seres e a cidade” de Nadir Afonso

V

No peito
um diadema
de espuma 
no mar salgado
se digladia
e cresce o caudal
de todas as terras
das fragas
e brasões
que os viram passar
contra corrente
na margem
em cada
cave uma revolta
a decantar
a cor rubi
da volúpia
e um cálice
de poesia.





"O privilégio dos caminhos " de Nadir Afonso

VI

Espera-os
a cidade que recobra
a lucidez
e suavidade de gente
cúmplice
nos arredores do tempo
no refúgio
das linhas direitas
que se fez
inamovível
a bater nas rochas
a vida inteira
ouve-se murmurar
o seu olhar
insaciável
em Leça da Palmeira
arrefece
o gin
na Casa de Chá
enquanto esmorece
o frémito
das gaivotas
incendeia-se
o teu corpo
luzeiro
de uma noite
e de uma cidade
sem fim.



"A Gaivota" de Nadir Afonso


Lisboa, 25 de Novembro de 2013

Carlos Vieira

sábado, 23 de novembro de 2013

O teu sorriso




Não sei quantos poetas
falaram sobre o teu sorriso
não sei se eu próprio
alguma vez
sobre ele escrevi.
Sem estação
lembro-me dele
e de nenhuma
outra flor
do jardim.
Sei que
quando ele se apaga
um lento crepúsculo
irradia.
Oiço um clarim
sobre a paisagem
e dela emergem
fragmentos de filigrana
e beija-me
o carmesim
dos teus lábios.
Sei da sua permanência
no coração
em lume brando
sei que de mim
me esqueço.
O teu sorriso
sobrevoando
o mundo que anoitece
algures
entre o sândalo
e o jasmim
perfume
que não se esquece.
O teu sorriso
batendo as asas
desfolhando páginas
o epílogo
e o sem fim.

Lisboa, 23 de Novembro de 2013

Carlos Vieira