sábado, 9 de novembro de 2013

Doméstico fulgor



no esmalte do espelho
esfuma-se
o teu sorriso
de bisel

turva-se
o teu rosto
na memória
propaga-se
no espanto
pousas o talher

ao fundo
a porta entreaberta
tu
és o gume
da espada de luz
que sorrateira
se esgueira

és o oriente sôfrego
um espasmo
que antecede
o medo
e o aroma das especiarias
sei-te
flor afogueada
por cima
das ervas

reconheço-te
no sabor
dos espargos selvagens
naquela réstia de luz
crua

pungente
é o teu tronco solar
húmido esplendor
a gotejar
água do banho


corcel de turquesa
que incendeia
os fantasmas
que te espreitam
na penumbra
do corredor

serás a bissetriz visionária
de um coral
contra a blasfémia
e o azedume
na janela
bebes o chá
em contraluz

pantera
na festa da cópula
que progride
furtiva
e que no meu peito
desagua
dilema
que se desafaz
em leito
de espuma e sal
diária
e renovada
luta
sem tréguas
que apazigua.

Lisboa, 9 de Novembro de 2013
Carlos Vieira

                                                “Mulher sentada em azul” Jean Spitzer

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Palavra derradeira



Podia ser no Outono
e descortinar-te
a anunciares
uma revoada de pássaros
algures
frágil e inquieta
entre o fumegar
das chaminés
e a ressonância
de prata das oliveiras
a partir da reentrância
da encosta
da última vez
partia
um rio de lume
da tua boca.

Devagar 
aproximo-me
a coberto
do fogo
e surpreendo
a nudez diáfana
das tuas espáduas
enquanto crepitam
efémeras
folhas de eucalipto
na urgência
das libações
e da tua febre
entretanto
uma tempestade
perpassa
pelo teu rosto
acomete-me
o temor
de te perder.

Prostrar-me-ei
perante
a tua humanidade
confessarei
as minhas fragilidades
a insensatez
da minha volúpia
e pusilânime
vacuidade
serei apenas
mais uma folha
que cai
matéria
que se extingue
e tu podes ser
apenas um perfume
que evola
no desprendimento
desse voo e dessa queda
instantes
únicos de entrega
sopro de eternidade
o teu nome
exangue
na minha boca.


Lisboa, 7 de Novembro de 2013
Carlos Vieira


                                                         Pintura de Dominique Telmon

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Já me faltam as palavras…

Já me faltam as palavras…
Há aquelas que parecem ter dado à costa ou foram resgatadas entre os escombros de um naufrágio, palavras-búzio, seixos redondos e ninhos de pássaro, na rocha escarpada, a salvo dos predadores.
Algumas, mastigo-as em seco, agridoces, não me saem, não as consigo acompanhar ou escrevê-las inteiras, outras, ausentam-se para longe e quando as procuro constato que as perdi, mesmo, nos cada vez mais raros acessos de clarividência ou quando não estou submerso no nevoeiro.
No entanto, existem umas tantas que são tão fiéis como rebanhos, tenho muitas vezes das enxotar de perto de mim, parecem não sobreviver sem mim. Confesso nunca ter experimentado viver sem elas.
Outras, não me deixam respirar, enchem-nos a boca, entram-nos pelos olhos adentro, entopem-nos o pensamento, ficamos ali especados, desamparados, de costas voltadas para o ocaso, quando muito solta-se um murmúrio, uma interjeição.
Depois, há aquelas palavras que ultrapassam a altura da nossa vida e que temos dificuldade em nomear e as que podem já ser encaradas, como se fossem o princípio da decadência, primeiras sementes da nossa morte.
Deitam-se connosco e revelam-nos seus corpos desnudos, sem nenhuma afeição e pudor, em decúbito dorsal, calam-nos e revolvem-nos as entranhas, despertam-nos as memórias, os últimos ecos das ondas a perseguirem as gaivotas.
Chamo por elas perdidas nos campos, às voltas com os pássaros, brilham cor de azeviche como azeitonas depois da chuva, no entanto, já não me obedecem como quando era criança, em que as inquietava de bichos e armadilhas.
Agora soletro-as, decomponho-as, ausculto-lhe o rumor que se desprende débil, como se fosse uma fonte surpreendente, no mármore da parede deste tempo, mas este meu desvelo parece ter apenas como penhor o seu desprezo e parece-me ouvi-las segredar com desdém “desiste, deixa-nos respirar!”.
4 de Novembro de 2013

Carlos Vieira

domingo, 3 de novembro de 2013

Sou como o rio



                                                 "Terres des deux fleuves" de Anselm Kiefer

Sou como o rio
que se abraça às raízes 
na margem
de um desconhecido
caminho.

Sou como o rio
de uma corrente
que não sei
se nasce
dentro ou fora
de mim.

Sou como o rio
onde descanso
e penso
o rouxinol
e a sombra
espero o canto
que é seiva
e ânimo
do salgueiro.

Sou como um rio
que sonha
no horizonte
o côncavo
fulgor
de uma ponte
que floresce.

Sou como o rio
para onde
me inclina
um aroma de maças
em oblíquo
num cesto de verga
desce a vereda
e as primeiras horas
das manhãs.

Sou como o rio
sob o adeus verde
do canavial
que delimita
o sabor
dos pomares
o saber
dos refúgios
e eco
do rumor
dos insectos
e que transborda.

Sou como o rio
onde decifro
as legendas
súbito reflexo
dos peixes
à tona de água
depois
que se perderam
na escuridão
das fendas
e que ficaram cegos
ao desfazerem
os remoinhos
da dúvida
evitando
o vórtice do nada.

Sou como o rio
que incessante
corre
e neste pulsar
de água
a terra negra
treme
o ouro do trigo
oscila
no poente
no bulício do cais
estremece
gente
que leva consigo
aquele
que está perto
e o distante.

Lisboa, 3 de Novembro de 2013
Carlos Vieira


Espólio



Barba hirsuta
um olhar sorridente

ingénua
uma metade de maçã 
onde ainda se notava
o pormenor da incisão 
descendente de uns caninos

três maços de tabaco amarfanhados
por um anónimo desespero

meia dúzia de bilhetes de autocarro
de viagens em sentido único
sem regresso

"flyers"
“oferecendo” casas
depois da bolha imobiliária

um jornal sensacionalista de véspera
onde afloram as suas unhas sujas
com muito sangue
de notícias requentadas

uma lata meia vazia
de refrigerante
sem gaz
de antes do mundo
muito provavelmente
um cheiro nauseabundo

e ainda não foi desta vez
que encontrou
um pente
já lá vão uns meses
de cabelo desgrenhado

agora em alegria breve
devora
os restos de um "happy meal"

por cima do candeeiro
protesta um corvo verde
ali no gaveto de um cruzamento
da Av. De Roma com a Av. Do Brasil

apenas um homem
e o espólio
que lhe resta.

Lisboa, 2 de Novembro de 2013
Carlos Vieira

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Acorde



Tarda
uma inquietação
ao longe
vibra
na corda ténue
do estendal
ao longo
do tempo
um desvario
solta-se
o botão
um gomo de luz
tange
e acaricio
o busto
da memória
suspensa
nos teus ombros
e aquela blusa
era o desfraldado
estandarte
o teu corpo
de vento
esquecido
violino.

Lisboa, 31 de Outubro de 2013
Carlos Vieira


                                      Imagem de Alessandro Gottardo “Estendal de Música”

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Ruminações de "la vache" que agora sorri

Ruminações de “la vache” que já agora sorri
No terceiro caixilho a contar de cima, da janela de guilhotina, pasta uma vaca intermitente, espero até que ela venha estilhaçar os vidros com seus cornos retorcidos.
Que dê uma marrada, nestes dias de chumbo, neste predomínio da ausência e a corrente de ar que vença este cheiro a mofo.
Olha a vaca insistentemente para o local onde me encontro, na pausa do pasto, enquanto bebo o leite fresco que escorre pelos contrafortes da montanha.
As vacas e os caramelos são castanhos, a única diferença é que a elas não é necessário desembrulhá-las. De resto tem muitas semelhanças, o seu olhar libidinoso e delambido, a sua natureza pegajosa.
Com o leite das vacas faz-se o queijo e o chocolate, tudo isso podia ser um surpreendente spa de aromas e sabores e de poesia, se não fossem os pobres e tudo o que é elementar, se estar a transformar em sonho nestes dias.
Lisboa, 29 de Outubro de 2013
Carlos Vieira