segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Já me faltam as palavras…

Já me faltam as palavras…
Há aquelas que parecem ter dado à costa ou foram resgatadas entre os escombros de um naufrágio, palavras-búzio, seixos redondos e ninhos de pássaro, na rocha escarpada, a salvo dos predadores.
Algumas, mastigo-as em seco, agridoces, não me saem, não as consigo acompanhar ou escrevê-las inteiras, outras, ausentam-se para longe e quando as procuro constato que as perdi, mesmo, nos cada vez mais raros acessos de clarividência ou quando não estou submerso no nevoeiro.
No entanto, existem umas tantas que são tão fiéis como rebanhos, tenho muitas vezes das enxotar de perto de mim, parecem não sobreviver sem mim. Confesso nunca ter experimentado viver sem elas.
Outras, não me deixam respirar, enchem-nos a boca, entram-nos pelos olhos adentro, entopem-nos o pensamento, ficamos ali especados, desamparados, de costas voltadas para o ocaso, quando muito solta-se um murmúrio, uma interjeição.
Depois, há aquelas palavras que ultrapassam a altura da nossa vida e que temos dificuldade em nomear e as que podem já ser encaradas, como se fossem o princípio da decadência, primeiras sementes da nossa morte.
Deitam-se connosco e revelam-nos seus corpos desnudos, sem nenhuma afeição e pudor, em decúbito dorsal, calam-nos e revolvem-nos as entranhas, despertam-nos as memórias, os últimos ecos das ondas a perseguirem as gaivotas.
Chamo por elas perdidas nos campos, às voltas com os pássaros, brilham cor de azeviche como azeitonas depois da chuva, no entanto, já não me obedecem como quando era criança, em que as inquietava de bichos e armadilhas.
Agora soletro-as, decomponho-as, ausculto-lhe o rumor que se desprende débil, como se fosse uma fonte surpreendente, no mármore da parede deste tempo, mas este meu desvelo parece ter apenas como penhor o seu desprezo e parece-me ouvi-las segredar com desdém “desiste, deixa-nos respirar!”.
4 de Novembro de 2013

Carlos Vieira

domingo, 3 de novembro de 2013

Sou como o rio



                                                 "Terres des deux fleuves" de Anselm Kiefer

Sou como o rio
que se abraça às raízes 
na margem
de um desconhecido
caminho.

Sou como o rio
de uma corrente
que não sei
se nasce
dentro ou fora
de mim.

Sou como o rio
onde descanso
e penso
o rouxinol
e a sombra
espero o canto
que é seiva
e ânimo
do salgueiro.

Sou como um rio
que sonha
no horizonte
o côncavo
fulgor
de uma ponte
que floresce.

Sou como o rio
para onde
me inclina
um aroma de maças
em oblíquo
num cesto de verga
desce a vereda
e as primeiras horas
das manhãs.

Sou como o rio
sob o adeus verde
do canavial
que delimita
o sabor
dos pomares
o saber
dos refúgios
e eco
do rumor
dos insectos
e que transborda.

Sou como o rio
onde decifro
as legendas
súbito reflexo
dos peixes
à tona de água
depois
que se perderam
na escuridão
das fendas
e que ficaram cegos
ao desfazerem
os remoinhos
da dúvida
evitando
o vórtice do nada.

Sou como o rio
que incessante
corre
e neste pulsar
de água
a terra negra
treme
o ouro do trigo
oscila
no poente
no bulício do cais
estremece
gente
que leva consigo
aquele
que está perto
e o distante.

Lisboa, 3 de Novembro de 2013
Carlos Vieira


Espólio



Barba hirsuta
um olhar sorridente

ingénua
uma metade de maçã 
onde ainda se notava
o pormenor da incisão 
descendente de uns caninos

três maços de tabaco amarfanhados
por um anónimo desespero

meia dúzia de bilhetes de autocarro
de viagens em sentido único
sem regresso

"flyers"
“oferecendo” casas
depois da bolha imobiliária

um jornal sensacionalista de véspera
onde afloram as suas unhas sujas
com muito sangue
de notícias requentadas

uma lata meia vazia
de refrigerante
sem gaz
de antes do mundo
muito provavelmente
um cheiro nauseabundo

e ainda não foi desta vez
que encontrou
um pente
já lá vão uns meses
de cabelo desgrenhado

agora em alegria breve
devora
os restos de um "happy meal"

por cima do candeeiro
protesta um corvo verde
ali no gaveto de um cruzamento
da Av. De Roma com a Av. Do Brasil

apenas um homem
e o espólio
que lhe resta.

Lisboa, 2 de Novembro de 2013
Carlos Vieira

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Acorde



Tarda
uma inquietação
ao longe
vibra
na corda ténue
do estendal
ao longo
do tempo
um desvario
solta-se
o botão
um gomo de luz
tange
e acaricio
o busto
da memória
suspensa
nos teus ombros
e aquela blusa
era o desfraldado
estandarte
o teu corpo
de vento
esquecido
violino.

Lisboa, 31 de Outubro de 2013
Carlos Vieira


                                      Imagem de Alessandro Gottardo “Estendal de Música”

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Ruminações de "la vache" que agora sorri

Ruminações de “la vache” que já agora sorri
No terceiro caixilho a contar de cima, da janela de guilhotina, pasta uma vaca intermitente, espero até que ela venha estilhaçar os vidros com seus cornos retorcidos.
Que dê uma marrada, nestes dias de chumbo, neste predomínio da ausência e a corrente de ar que vença este cheiro a mofo.
Olha a vaca insistentemente para o local onde me encontro, na pausa do pasto, enquanto bebo o leite fresco que escorre pelos contrafortes da montanha.
As vacas e os caramelos são castanhos, a única diferença é que a elas não é necessário desembrulhá-las. De resto tem muitas semelhanças, o seu olhar libidinoso e delambido, a sua natureza pegajosa.
Com o leite das vacas faz-se o queijo e o chocolate, tudo isso podia ser um surpreendente spa de aromas e sabores e de poesia, se não fossem os pobres e tudo o que é elementar, se estar a transformar em sonho nestes dias.
Lisboa, 29 de Outubro de 2013
Carlos Vieira

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Pequenas histórias de altas montanhas





I

O ar
leve
da montanha
desce
sobre o vale
faz-se ali
um silêncio
pesado
a todo
o comprido.

II

A água
cristalina
nas galerias
nos segredos
de granito
desce
ao sopé
da montanha
trauteando
música
fresca e suave
transparente
de câmara.

III

A lava
abraça
a montanha
serpente
de fogo
as cinzas
estendem
depois
um tapete
para os deuses
passearem
sobre a terra
inóspita.

IV

A neve
cobre
a montanha
apaga
os caminhos
uma página
em branco
sem história
agora
ninguém sabe
para onde ir.

V

No cume
da montanha
o céu
espetado
derramando
um rio azul
de coragem
e sangue frio
pela encosta
sobem
anjos caídos.

VI

No glaciar
da montanha
o homem
reencontra
a justa medida
do seu gesto
contido
e a irreverência
de o saber
breve
a moldar
numa noite de neve
um sonho
eterno.

VII

As aves
da montanha
exuberantes
conhecem-lhe
os abismos
o limite
da grandeza
lapidando
asas de pedra
a inconstância
e a firmeza.

VIII

As cabras
da montanha
equilibram-se
entre um tufo de erva
e nuvens
no pensamento
e de cornos no ar
parecem
subestimar
o princípio da gravidade
e os precipícios.

Gstaad, 23 de Outubro de 2013
Carlos Vieira

domingo, 20 de outubro de 2013

Écloga para mudar de vida


Écloga para mudar de vida

I
Lesto
é o coelho bravo
que depois
de inventar a madrugada verde
de erva
se esconde
na noite do matagal
que por ali ficou
para qualquer imprevista
eventualidade.

II
Mais ligeiro
do que o olhar ancestral
do homem
outra vez caçador
que o perscruta
do bucólico atalho
e que apenas se encontra
a si mesmo
capturado
em reflexos de orvalho.

III
Hábil
do outro lado do baldio
é o novo recolector
que distingue os cogumelos
e sacrifica as mãos
e a grandeza dos apelos
à festa de espinhos
e ao sangue
das amoras.

IV
Nesta visão
do tempo
tão complacente
a partir
da janela velux
do sótão
espreito o despertar
e pulsar desta gente
com vida
de bichos
eu daqui de cima
sou um deus
ou um anjo
que sem saber
tomar conta de mim
julgo a vida deles.

V
Deito
um último esgar
àqueles
que vivem
tantas vezes do ar
cada vez mais
de cada vez menos
aparentemente
em condomínio
com deuses
acreditando
que estando
mais perto da terra
mais lestos
vão chegar ao céu
eu fico aqui
na minha
água-furtada.


Lisboa, 20 de Outubro de 2013
Carlos Vieira