domingo, 16 de junho de 2013

Pequenos golpes de asa



O pardal
era o coração volante
do arbusto
agitado.

Uma lagartixa
esgueirava-se
pelo caule
como um desejo.

Compareceu
naquela tarde
a hábil borboleta
em ziguezague
pragmática
e ávida
de folhas suaves.

No entanto
este deslumbramento
e rumor
de animais breves
foram interrompidos
por um único estampido
num único segundo.

À morte
do pardal
bastou o gesto
também ele breve
do gatilho
esse pássaro eterno
em gaiola
de ferro.

Talvez lhe reste
a sombra do arbusto
sem coração
ou um sonho separado
do corpo
como a cauda
da lagartixa.

A frágil borboleta
sobrevivente sem memória
bate as asas
resiste ao efeito de sopro
do chumbo
ao cheiro da pólvora
caído sobre o pólen
resiste
na sua vida breve.

Batem as asas
as borboleta
destes tempos
carregando contigo
o peso insuportável
e a subtileza
de mudar o mundo.

Bater de asas
de borboleta
de melhorar
a sua vida curta
de lhe dar
fresca sombra
no desastrado voo
que antecede a sua morte.

Irrompe o arbusto
que não deixou de crescer
desde o princípio da história
com o chumbo
cravado no tronco
encostada a si
permanece
calada
uma espingarda.

Lisboa, 15 de Junho de 2013
Carlos Vieira



                                                           Pintura de autor desconhecido




sexta-feira, 14 de junho de 2013

Reflexão insone



O que me frustra
é esta eterna busca do equilíbrio
de que falava Zaratustra
porque é humano o erro
e a amargura
no homem coabitam em clausura
um animal assustado
e a selva do livre arbítrio
não percebo
o que via
onde queria chegar
o filósofo
depois das trevas da caverna
de que falava
cego de olhar o sol?
porque recusou a frescura
amável da sombra
e o calor e ternura da luz?
porquê a permuta
pela ponte instável e frágil
das palavras
a caminho da poesia
onde apenas existem sonhos
adiados
na clarividência sonâmbula
dos que deambulam
pela noite dos tempos

Lisboa, 13 de Junho de 2013
Carlos Vieira

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Digressão



I
Penumbra
habitação efémera
de asa cintilante
ou navalha oculta.

II
Sobre a fragrância das ervas
de olhos rasos
um gamo assustado
rasga
com suas hastes a bruma.

III
Na nervura
das folhas caindo contra o sol
pode decifra-se
na linha do coração da árvore
onde corre
um animal à solta.

IV
Agora
estou definitivamente
no seio do bosque
não sei se vou regressar
nem sei o caminho
sempre fui tentado
ou me perdi
neste caos
de confundir
a árvore e a floresta
e a clareira é o poema.

Lisboa, 13 de junho de 2013
Carlos Vieira




                                            “Life’s but a wlaking shadow” Francine Bradette

segunda-feira, 10 de junho de 2013

A têmpera dos sonhos dos homens de barro

 

Ainda agora

algures no tempo

pelo meio dia

ouço a sirene da empresa

de cerâmica

era a hora de “despegar”

via-os sair

deuses perplexos

sobreviventes

do fogo e dos fornos

em círculo de cansaço

nessa frágil

circunstância da louça

homens antigos

feitos na amável certeza

de um futuro de barro

a moldar hoje

pelas nossa mãos

 

Lisboa, 10 de Junho de 2013

Carlos Vieira


Foto de autor desconhecido

Memória a preto e branco


 
 

Reuni todo o material:

 

O silêncio expectante e macio

do pincel

os pigmentos da prata

e o rumor das faias

os reflexos do sol de alabastro

de uma materna ânfora

a memória fresca

nas manhãs dos domingos de Junho

depois da missa

ia sem sombra de pecado

aprender a nadar para o açude

e mergulhar a alma purificada

no rio

onde ainda meninos

espreitavamos todos os perigos

voltei-me de novo

para o cavalete

e entretanto tinham secado as tintas

enquanto me deixava

ir com as correntes

esquecendo a algazarra das cores.

 

Lisboa, 10 de Junho de 2013

Carlos Vieira

 


Image of the “topwalls.net”

 

 

sábado, 8 de junho de 2013

Em busca de um algoritmo perdido




Em busca do algoritmo perdido

Nunca tive grande competência 
Para números
Esta manhã acordei
Estremunhado
Às voltas com um algoritmo
Que me poderá mudar 
O rumo da vida
E já agora mudar o mundo
Tal como o conhecemos
A partir daqui
Se as contas no final 
Baterem certo
Todas as actuais projecções estatísticas
terão que ser corrigidas 
E muito daquilo 
Que se considerava errado ontem
Fará parte da perfeição 
Do amanhã
É um exercício que se apoderou de mim
As pessoas passam por mim
Ou na minha insónia
E eu ali vou
Ruminando a próxima operação
E o coração suspenso
Se conseguir
As palavras terão outro peso
O silêncio
Outra leveza
Resolvo as equações mais complexas
E envolvo-me 
Em progressão aritmética
Ultrapassando de forma sustentada
Todos os limites
Conheço o infinito
Destroço o horizonte mais próximo
Visitando a morte
Mantenho-a à distância
Sigo linhas de raciocínio
E sei que devo encontrar o equilíbrio
Algures na confluência
De uma linha de água
Da validação do perímetro
Deste sonho
Eliminar a redundância
No desespero da perspectiva 
Viajar entre a razão
E a perplexidade
Até ao centro da Terra
Olho fixamente
Para o mistério dos frutos
Numa súbita hipnose
De pêndulo
Resolvo o efeito multiplicador
Do sono
Que por fim nos transporta
À densidade da esperança
Ao ruído luminoso
Do Big Bang
Tecido da poeira galáctica
Breve diálogo
De paz entre planetas
Dos parâmetros
Da gravidade libertados
A caminho da beleza única
De um número ímpar
A todos acessível


Lisboa, 8  de Junho de 2013
Carlos Vieira


sexta-feira, 7 de junho de 2013

Poema fora de época para Tristan Tzara


Andei, andei
e vim parar aqui a este triste jardim
no fim de um mundo
onde os cães domésticos alçam a perna
e mijam o crepúsculo
desesperados
depois lambem nas mão do donos
as linhas dos sonhos
onde andam atrelados
e com excrementos em sacos plásticos.
Os peixes vermelhos do lago
no seu ancestral
desconhecimento da vida à superfície
sentam-se nos bancos do jardim
mordem o isco
pretendendo devorar os olhos
dos transeuntes
esses peixes fora de água
descem degrau a degrau
a falta de profundidade
do pântano
do seu pequeno mundo redondo
a que acrescentam
o abismo de obscura solidão.
Os pássaros
divagam nas árvores
na sua política de pequenos passos
e gestos
de jogar às escondidas
de vez em quando o canto
ou será que conversam
escarnecendo
das nossas farsas
arremedos de vida
atingidos por um seu dejeto
inventamos sinais de dinheiro
sobrar-nos-á por vezes 
sentido de humor
ou falta de imaginação.
Lisboa, 7 de Junho de 2013
Carlos Vieira


                                                  Fotografia de Man Ray "Tristan Tzara"

"Tristan Tzara (ou Samy Rosenstock, Moinesti, Romênia, 1896 – Paris, 1963) foi um poeta judeu e francês que nasceu em Moinesti, na Romênia, e faleceu em Paris aos 67 anos de idade. Foi um dos iniciadores do Dadaísmo. Em 1916 em plena 1ª Guerra Mundial (1914- 1918) que durou 4 anos e da qual participaram 18 países iniciada com o Atentado de Sarajevo e finalizada com a rendição dos alemães no Sudoeste Africano, um grupo de de refugiados em Zurique, na Suíça, iniciou o movimento artístico e literário chamado Dadaísmo.
Seu pseudônimo significaria numa tradução livre "triste terra", tendo sido escolhido para protestar o tratamento dos judeus na Roménia. Poeta e ensaísta, participou na fundação do movimento dadaísta em Zurique, em 1916." Wikipedia