quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

A eterna precariedade do amor


 

A noite mais pura nos teus ombros

é uma nau surpreendente

que transporta o orvalho das pérolas

e sobre si o gume afável do horizonte

a urdir palavras de sal e espuma

estou neste vagar de pescador

suspenso sobre a ponte

libertando da linha a nuvem

e a claustrofobia do peixe

que voa agora num céu de chumbo

olho-te por debaixo da máscara

que os dias vão segregando

mergulhado nas  névoas

inefáveis do tempo

estou de vigia

neste silêncio aflito

à solta na enseada um nó cego

aceso de fúria

os uivos da tempestade

são também revelações do teu corpo nu

ardem estrelas fugazes nas articulações

e abrando o músculo das vinganças

tornaram-se efémeras as ilusões de conquista

vou devorando correntes e âncoras

da madrugada

no esquecimento

prossegue o larvar das cicatrizes de luz

enquanto pirogas de espanto

navegam desgovernadas

escapando por um triz

aos corais da razão submersa

soçobramos no mistério da praia mar

à liberdade lapidar de vencer a morte

e à ansiosa expressão  de um olhar

entre a vereda vertical

e a emboscada

escondes-te num inquieto magnetismo

no entanto o mundo

arruma-se pacientemente

debaixo de um carvalho secular

os insectos vão soletrando o húmus

o que nos trai

é o triste desatar do esperanto das lágrimas

aguardando que compareças

na poesia

em que vou decantando a tua ausência

paciente

viro-me subitamente

e não és apenas a folha caduca

que cai

tu és a minha única certeza

pendular.

 

 

Lisboa, 14 de Fevereiro de 2013

Carlos Vieira


 
                                               Chagall
 

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Poema elementar




nada melhor
para fazer  “boa poesia”
do que estar desempregado
e de barriga vazia

viver toldado
pela palavra necessária

de manhã acordar com o esboço
do pequeno almoço

nada melhor
que acariciar os flancos
dos versos brancos

de alma feita num farrapo
num último esforço cénico
içar
a bandeira da dignidade
e gritar
limpem-se a este guardanapo
que não tenho papel higiénico.

Lisboa, 11 de Fevereiro de 2013
Carlos Vieira

                               Foto de autor desconhecido

"Hasselblad Masters Book" Documentary

Sally Mann - Deep South

Caracol põe os “corninhos” ao sol

 
Caracol põe os “corninhos” ao sol
constróis de clorofila
e da nervura da flor a casa que carregas
atravessas devagar
o perfume de orégãos
o clamor das rãs e o rumor da água
adormeces à margem
da catarata e do pântano do tempo
percorres nesse silêncio de prata
a distância que sabes subtil
que separa a terra da lua
que te esconde
resistes no interstício do tronco
na invencível solidão da fraga
no vertical exercício
teces á tua volta o poema
que vai de  encontro ao mundo
que te esmaga
caracol põe os “corninhos” ao sol

Lisboa, 11 de Fevereiro de 2013
Carlos Vieira

                                                  "Etoiles d'Escargot" - Juan Miró

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Hoje fui a um funeral...


Hoje fui a um funeral

onde reencontrei como é natural

aquelas pessoas que ainda não morreram

aquelas pessoas que por circunstâncias da vida

estavam para mim um pouco mortas

esquecidas ou apenas de vez em quando lembradas

como outras pessoas entretanto ou há muito já mortas

o que cada vez mais acontece

é que cada vez vou a mais funerais e a velórios

onde nos vamos pondo cada vez mais à vontade com a morte

sem a enfrentarmos verdadeiramente

e de tanto a vencermos durante a vida nunca lhe damos

grande valor

mesmo quando a nossa vida já é pouco mais

que uma morte adiada

ou uma morte vivida

hoje fui ao funeral da minha prima Conceição

que na sua humilde medida soube ajudar-me durante anos

a que a minha existência à altura curta

naquele tempo de cinzas

fosse também de entrega

à ternura do seu gesto e da palavra

de muito mais vidas vividas

e pequenas mortes vencidas.

 

Lisboa, 10 de Fevereiro de 2013

Carlos Vieira

 

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Ossos Ilíacos


 

Desconheço a razão, porque hoje acordei com estes ossos atravessados no pensamento, como se fossem ilhas que emergem, reminiscências de paisagens mediterrânicas.

Os Ilíacos não são muito conhecidos, excepto certamente nos pesados manuais da anatomia, no surrealismo desinfectado das urgências dos hospitais, nas salas de diagnóstico e de rastreio dos traumatizados dos acidentes de viação e de outros episódios, que na vida moderna nos deixam literalmente esmagados, onde nem os ossos mais desconhecidos ficam ilesos.

Fui pois, em busca dos Ilíacos. Verifiquei que os mesmos são possuidores de asas como tantos pássaros, só que estes pairam ali na zona da bacia e voam por ali, naquela tão sensível zona do corpo humano, tendo por missão a protecção da zona pélvica e sendo um dos mais relevantes suportes, da nossa erecta existência.

Até aqui nada de extraordinário, que uns desconhecidos ossos tenham mais relevância que aquela que outros ostentam ou reivindicam, é algo que os nossos pobres esqueletos, ao longo da sua vida, vão acompanhando com a indiferença ou a resignação daquilo que se designa serem “ossos do ofício”.

Nesta exploração matutina pelas mais duras partes baixas da humana compleição óssea, fiquei contudo a saber que os tais ossos, Ílio, Ísquio e a Púbis eram acompanhados pelo Cóccix e Sacro, o que diga-se de passagem são companhia de respeito.

Ossos que já me deixaram sem palavras e quase me fizeram perder a respiração, pois quando atingidos, deixam-nos particularmente disponíveis, para negociar aquilo que até aí achávamos absoluto, indiscutível e passando a reconhecer como muito razoável, aquilo que até aí, era para nós do domínio das mitologias.

Sentado sobre o assunto, fui escalpelizando os Ilíacos e trazendo-os para a luz do dia, como se num laboratório os visse por outro ângulo, fazendo incidir sobre aqueles uma outra luz.

Abracei pois estas partes mais recônditas e menos conhecidas da nossa estrutura, bebi todo o conhecimento que dali podia dispor, visando ultrapassar tão injusto esquecimento.

Senti necessidade de me espreguiçar e foi então que senti de novo aquela dor aguda, me apunhalou “as minhas cruzes”, deixando-me de joelhos, abominando os meandros enciclopédicos, que me haviam despertado outra vez esta recente e ilíaca fragilidade.

 

Lisboa, 9 de Fevereiro de 2013

Carlos Vieira