quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Epidural


sonâmbulo
errando pelo meu meio-dia
em pelo

animal
humano nos bolsos no silêncio e no vazio
dos princípios

vagabundo
de miragens e ideias rarefeitas e mais não digo
dada a dormência do frio

foge-se ao confronto
às nódoas negras e ficamos na anestesia local
do desemprego

marginal
que adia a sua entrega e aguarda o seu imposto
na fila do medo

escolhe a contragosto
o recanto mais escuro e a barba por fazer
e as lâminas da brisa

o calor do jornal
a tinta que difunde o embrenhado perfume
emaranhados nas entrelinhas da crise

não pensar
desfrutar a paisagem estreita e acolchoada
que passa ao lado do espaço e do tempo

Lisboa, 27 de Dezembro de 2012
Carlos Vieira

sábado, 22 de dezembro de 2012

Em aviso amarelo



barco açoitado no cimo da vaga
ali se ergue a desfraldada lua cheia
alma coroada num vendaval se apaga

fantasmas de nuvens em alucinação
nas árvores tremem a ave e a candeia
corre do abraço de afogado para o coração

do olho da tempestade foge um avião
na planície o homem e o hangar iluminado
apreensivos no cais para que se salve a ilusão

adivinham-se animais em redor no largo círculo
em sacrifício e nos caminhos do imolado
silêncio subleva-se a liberdade e o crepúsculo

Lisboa, 22 de Dezembro de 2012

Ontem à tarde, um rebanho...


Ontem à tarde, um rebanho de duas centenas de ovelhas invadiu o asfalto de uma estrada dos subúrbios, podia ter sido uma tragédia, quando aquelas começaram a tosar os veículos e os ocupantes encurralados. Depois, o pastor lá conseguiu encaminhar os automóveis e os ocupantes para os baldios, ali voltaram a ruminar a erva e o beco sem saída das suas vidas, os cães de guarda a morderem-lhe as canelas, as ovelhas prosseguiram rumo aos seus destinos, sintonizando na rádio outros balidos, perante a veemência dos cajados, felizmente, que tudo regressou à normalidade.

 

Lisboa, 22 de Dezembro de 2012

Carlos Vieira

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Dúvida pouco metódica

 

Há quanto tempo não via o céu?

Há quanto tempo não vejo o mar?

Hoje aquele chegou nas nuvens  

do pensamento profundo e pesado

o mar esse ficou-me ali a ecoar

nas mãos onde ficou o sal e o cheiro

do robalo que escolhi no mercado

ou talvez o problema seja da conta

a descoberto e do crédito mal parado

e a porra do peixe seja de viveiro

tudo isto se confunde no mar e no céu

da vontade que se mistura de desejo

aquilo não foi mais que um ar que me deu.

 

Lisboa, 21 de Dezembro de 2012

Carlos Vieira

 

 

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Debaixo da ponte


 

Olha a ponte

e atravessa-a

a seguir olha

para este lado

e regressa aqui

imperturbável

o rio vai correndo

sem sair dali

neste vai e vêm

morre de sede

atira-se da ponte

e o rio afoga-se

dentro de si.

 

Lisboa, 20 de Dezembro de 2012

Carlos Vieira

                                                 “Goodbye letters on the bridge” Glenn Brady

Humi-di-lhação


O cachorro,

seguramente vadio

entrou na praça

de madrugada

dirigiu-se à estátua

por instantes

alçou a perna e seguiu

o herói de olhar vítreo

ali ficou verde de raiva

e de “humi-di-lhação”

a um herói esquecido

até os cães lhes

mijam em cima

e não vamos falar

dos pombos.

 

Lisboa, 20 de Dezembro de 2012

Carlos Vieira

 
                                                “A Metamorfose de Narciso” de Salvador Dali

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Gestos de amor breve


 
1.

Faísca

frágil flor

incandescente

eu te desconheço

golpe de asa

ou página efervescente.

 

2.

Pássaro de fogo

frémito

fulgurante

não te mereço

nunca te mereci

és o relâmpago

a que sucede

o meu inevitável

estremecimento.

 

3.

Estrela à solta

felina

vertiginosa

deixa-me apenas dormir

ou sucumbir

à altura

da tua febre.

 

4.

Teu olhar de metal

a vibrar de desejo

e de fulgor

e de ânsia

e de ternura

como te vou sobreviver?

que podes tu saber da morte

que perdura?

 

5.

Farpa

a rasgar o peito

a apunhalar a solidão

e a tristeza

que ainda assim resvala

de um vulcão

e cobre

no fim de semana

a imagem sépia do tempo

teu rosto.

 

6.

A faúlha

fez insurrecto o coração

e intactos o fósforo

a minha fogosidade

o conhecimento

lavra o fogo-posto

que devasta

o eco do teu nome

no mistério da floresta.

 

7.

Início da festa

sai-lhe da boca

a palavra inacessível

a sua língua em fogo

devoras-me as entranhas

no alto forno do silêncio

que tempera a alma

tu és tudo em que acredito

eu sou tudo aquilo

que de ti me fica.

 

8.

 

Tudo será breve

ou princípio de um fim

que se apaga

que nos foge

que reacende.

 

Lisboa, 18 de Dezembro de 2012

Carlos Vieira

 
                                                           “Fire” por Madison Moore