quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Guerra civil




Uma súbita iluminação, uma corrente de ar, o efeito de sopro, o clarão na árvore do medo,
os efeitos colaterais e o estrépito das sirenes.
As pernas e corpos pela terra e pelo ar, as estrelas e o azul do céu sangrando, a entrar pelo
sótão, as botas cardadas e tu sem respirar debaixo da cama.

O combustível no pavio é uma combinação dessa paz podre e do rosnar de ameaças com
escaramuças de permeio. Seguir-se-á, certamente, a declaração de guerra após aquele navio
ou antes um barco a remos, um avião de papel ou a desculpa de uma flor que furou o
bloqueio.

Oiço o assobio do vento na empena e o grito lúgubre na chaminé, o rufar dos tambores,
alguém a contar espingardas. A guerra bate-nos à porta e as crianças vão dormir para cama
dos pais, escondem-se debaixo dos cobertores, caso não tenham sido já todos alistados.

Há um rosto antigo que arde na campânula da candeia que cuida dos soldados feridos,
dos gazeados, neste imenso hospital de campanha faltou a eletricidade.
Todos já fomos atingidos e já ficamos às escuras, tivemos em tantas frentes. Agora,
recordando, também nós confundimos o amor e a luz com a compaixão de uma enfermeira.

Enquanto o Inverno se apodera das trincheiras, a água ferve na cafeteira.
Neste tempo de rações de combate, de comida fora de prazo, os soldados do pelotão aperta-
se-lhe o dedo no gatilho e no coração, enregelados.
As vítimas dos fuzilamentos também se lhes aperta o vazio e um irmão do outro lado da
barricada.
Junto aos muros e labirintos de tijolo das cidades sitiadas, todos agonizamos, comendo o pão
que o diabo amassou e bebemos café sem açúcar.

Entre as rugas de tantas tempestades e batalhas há olhos que cintilam de demência e alegria, outros que faíscam de raiva ou ardem nas lágrimas de fumo e de pólvora, as granadas cegas confundem-se com aves e o esvoaçar dos estilhaços dos sonhos, tornando impossível à mão gentil o amanhecer que procura.

Lisboa, 31 de Outubro de 2012
Carlos Vieira

                                                  “O Fuzilamento” de Francisco Goya

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

História com fim triste para o plátano da minha rua



Não importa a existência

de um único plátano na minha rua

aliás não tem qualquer relevância

apenas perdia

e isso não se pode considerar pouco

um acordeão de vento.


Sei dele no outono

das folhas vermelhas

que me acenam

que se vão embora

há árvores que somente

fazem sentido

em algumas estações

noutras eram dispensáveis.


Sei dele também

que está etiquetado para ser abatido

pelos serviços camarários

o que é pena

puro egoísmo

causa-me um certo transtorno

às minhas tardes livres.



Encosto-me a ele por vezes

e oiço-lhe bater um relógio bêbedo de seiva

ninguém dá valor às árvores

que abraçamos durante a vida

com quem fizemos amor

árvores poderosas

de inspiração e sombra fresca


Sei dele do plátano

pela penugem das bolas verdes

sob a relva ou penduradas

amáveis como pequenas nuvens

que amadurecem

habituei-me a admirá-la

e a  considerar a sua opinião vegetal.


Por baixo havia um banco de jardim

de um verde desmaiado

ali se contracena sempre

o mesmo drama

de uma velha conhecida solidão

e das flores que emergiam dos seus olhos

era um banco com o freio nos dentes

e de raízes na terra

de quem vivia à sombra do plátano.


No plátano os pássaros eram fugazes

assombrações

uma bela manhã recortada por uma motosserra

e o plátano passou a ser

mais uma assombração.


Lisboa, 29 de Outubro de 2012

Carlos Vieira

João Paulo, Peter Epstein & Ricardo Dias - Deolinda


Eternity - genius Lisa Gerard


domingo, 28 de outubro de 2012

Felino


 

 

Na sombra selvagem

fulge tão ágil e letal

o gesto mais puro

que ceifa uma vida

no rumor da folhagem

o coração das clareiras

o golpe tranquilo e audaz

o carvão da camuflagem

reescrevendo a paz

 

é o gume do silêncio

aceso nos meandros

da fome e da morte

um grito enlaçando

estrelas que deixam

as garras degolando

noites de insónias

 

aquela faca pousada

uma ave da eternidade

que se esvai no pulso

os dentes que rasgam

a pele das palavras

e calam o desespero

do sangue que recuperou

a luz e a liberdade

 

é urgente o relâmpago

que ilumina esta fera

em nós encurralada

que liberte de nós

este vazio esta ameaça

esta voz que apodrece

na garganta

do tempo que nos esquece

que nos devora

tão presente

tão felina por isso inocente

 

Lisboa, 28 de Outubro de 2012

Carlos Vieira

 

 

 

 

sábado, 27 de outubro de 2012

Ousadia


 
 

Trama

no cerzir a luz

dos trémulos estores chineses

um crepúsculo de lâminas de madeira

e de olhos dos vigilantes da tolerância

esses que observam incrédulos

os contornos do destemor

dos que se movimentam

no lusco fusco da carne e da vida

deixando nas entrelinha

os pássaros

dúcteis de alegria

e as palavras as que soçobram de prazer

ambos prenhes de firmeza

possuídos de feroz dissidência

beijam-se na penumbra ou na praça pública

recusando todos os pelourinhos

resgatando à reverência do silêncio

o desvendar do amor

e o propósito de serem senhores

do seu caminho.

 

Lisboa, 27 de Outubro de 2012

Carlos Vieira


  
                                                  “O Poeta com os pássaros” de Marc Chagall

 

 

 

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Fragmentos de alma rústica



I
Sou um vago ouriço
que erra pelas  hortas
verdejantes
que ora se enrola
ora vacila
em sonhos de nevoeiro
e clorofila

II
Sou um pássaro
ou uma ave migrante
que no seu canto
os seus procura
ou protege do perigo
e a baixa altitude
ora leva consigo
o peso da angústia
ora a alegria do trigo
  
III

Eu volto ao campo
levo comigo as ruas
toda minha vida
revolta
do gozo imediato
e inconsequente
e no forno cozo
um único pensamento
uma fatia de pão quente

IV
Eu sou todas as serras
ainda me cercam
as oliveiras
nos dias cinzentos
e dias de prata
cheguei atrasado
ao horizonte
nem os moinhos
já fazem farinha
nem os sinos tocam

 V
Sou eu que estou
lá em baixo
onde o rio anda já não corre
já sem peixe
nem rouxinóis
ou cabeleiras de vime
e nas margens caracóis
não extravasa
neste rio  ninguém se afoga
ninguém sai de casa


Lisboa, 26 de Outubro de 2012
Carlos Vieira



                                                            “My Soul” Karen Meyere