segunda-feira, 29 de outubro de 2012

João Paulo, Peter Epstein & Ricardo Dias - Deolinda


Eternity - genius Lisa Gerard


domingo, 28 de outubro de 2012

Felino


 

 

Na sombra selvagem

fulge tão ágil e letal

o gesto mais puro

que ceifa uma vida

no rumor da folhagem

o coração das clareiras

o golpe tranquilo e audaz

o carvão da camuflagem

reescrevendo a paz

 

é o gume do silêncio

aceso nos meandros

da fome e da morte

um grito enlaçando

estrelas que deixam

as garras degolando

noites de insónias

 

aquela faca pousada

uma ave da eternidade

que se esvai no pulso

os dentes que rasgam

a pele das palavras

e calam o desespero

do sangue que recuperou

a luz e a liberdade

 

é urgente o relâmpago

que ilumina esta fera

em nós encurralada

que liberte de nós

este vazio esta ameaça

esta voz que apodrece

na garganta

do tempo que nos esquece

que nos devora

tão presente

tão felina por isso inocente

 

Lisboa, 28 de Outubro de 2012

Carlos Vieira

 

 

 

 

sábado, 27 de outubro de 2012

Ousadia


 
 

Trama

no cerzir a luz

dos trémulos estores chineses

um crepúsculo de lâminas de madeira

e de olhos dos vigilantes da tolerância

esses que observam incrédulos

os contornos do destemor

dos que se movimentam

no lusco fusco da carne e da vida

deixando nas entrelinha

os pássaros

dúcteis de alegria

e as palavras as que soçobram de prazer

ambos prenhes de firmeza

possuídos de feroz dissidência

beijam-se na penumbra ou na praça pública

recusando todos os pelourinhos

resgatando à reverência do silêncio

o desvendar do amor

e o propósito de serem senhores

do seu caminho.

 

Lisboa, 27 de Outubro de 2012

Carlos Vieira


  
                                                  “O Poeta com os pássaros” de Marc Chagall

 

 

 

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Fragmentos de alma rústica



I
Sou um vago ouriço
que erra pelas  hortas
verdejantes
que ora se enrola
ora vacila
em sonhos de nevoeiro
e clorofila

II
Sou um pássaro
ou uma ave migrante
que no seu canto
os seus procura
ou protege do perigo
e a baixa altitude
ora leva consigo
o peso da angústia
ora a alegria do trigo
  
III

Eu volto ao campo
levo comigo as ruas
toda minha vida
revolta
do gozo imediato
e inconsequente
e no forno cozo
um único pensamento
uma fatia de pão quente

IV
Eu sou todas as serras
ainda me cercam
as oliveiras
nos dias cinzentos
e dias de prata
cheguei atrasado
ao horizonte
nem os moinhos
já fazem farinha
nem os sinos tocam

 V
Sou eu que estou
lá em baixo
onde o rio anda já não corre
já sem peixe
nem rouxinóis
ou cabeleiras de vime
e nas margens caracóis
não extravasa
neste rio  ninguém se afoga
ninguém sai de casa


Lisboa, 26 de Outubro de 2012
Carlos Vieira



                                                            “My Soul” Karen Meyere



quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Musgo...


 

Musgo

Ode alucinante

Rumor de corrente nocturna

Filigrana de folhas caducas de carvalho

Entrelaçadas de céu para um pássaro afoito

E que no vagar dos insectos insones acontece

Na subtileza urgente dos meus dedos humedece

Labirinto de grutas e selva de fragâncias onde pernoito.

 

Lisboa, 24 de Outubro de 2012

Carlos Vieira

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Faúlhas



Ígneo, enquanto andava durante o Verão passado, por terras calcinadas pela devastação dos incêndios, deparei-me com este controverso adjetivo que tanto alude à natureza como à cor do fogo. Sendo certo que, uma coisa pode não implicar a outra, contrariamente à expressão, “não há fumo sem fogo”, fórmula popular que traduz uma estranha ressonância e coincidência científica.

É ancestral a busca e preocupação do ser humano por fontes de ignição, pelo despoletar o fogo, pois conhecer o que está na origem do mesmo, foi sempre meio caminho, para percebermos os primeiros passos desse homem que nasceu imaculado ou do louco incendiário, do homem que brinca com o fogo e daquele outro que domina o mundo pelo seu poder de fogo ou, tão-somente, do humilde residente das fogueiras e dos fornos, saltimbancos manipuladores das fontes de calor, que moldam os resistentes materiais e os tornam cristais, habitáveis, de uma beleza polida e quase eterna.

A “atração do fogo”, não pode ser considerada, nem sequer uma derivação do “fogo que arde sem se ver”, pois neste caso o ígneo poder faz de nós combustível, enquanto na primeira, o homem provoca a combustão, ajuda a que a mesma se propague ou no mínimo, protagoniza um qualquer Nero, em êxtase perante uma insignificante Roma, em chamas.

Não é só no meu imaginário que as labaredas lavram histórias de tios-avós á lareira, desfiando um rosário de heróis decantados em cofres e alcovas medievas, nesse crepitar de escaramuças e de paixões dissidentes.

Contudo, foi nesse fogo lento e na sedimentação dessa lava de estórias que se aperfeiçoou a liga, que nos tornou mais firmes, aguentando as messiânicas correntes e deslizes, temperando no coração um rumo demiurgo e mantendo-lhe a febre e o ponto de fusão, que nos reinventa e eleva a cada momento, ao deflagrar do renovado conhecimento, exortando corajosos gestos de misericórdia e humanidade.

Foram definhando as fogueiras que sobrevoamos na infância, os dragões que nos davam a prevalência das florestas e o fogo-de-artifício que dava início ao sortilégio estival, de dias dionisíacos de festa.

Travestidos de novos modelos e roupagens, passaram-se a fazer às escondidas os autos de fé iluminando tenebrosas masmorras e estreitos labirintos de espírito, fustigando quem enfrentando as trevas, se atrevia a alumiar a penumbra com o candeeiro queimando o óleo de esperançados discursos e de generosas palavras sussurradas.

O inferno ardia nas fronteiras da nossa prodigiosa imaginação, os mafarricos delatores em sulfúreos lugares evoluíam, permaneceram refractários às línguas de fogo que os lambiam e flamejavam archotes, tornando mais real a dimensão do homem e do seu inferno e mais relevante o doce vegetar da sua sombra bruxuleante.

No entanto, todas aquelas reflexões, se foram apagando e naquele campo de desolação, onde de pé, a negritude dos troncos nus acusadores protestavam, a cinza que como um manto cobria terra, não havia nada mais para arder, apenas o acaso do rescaldo de um tempo de solidão, o amor tinha-se tornado num fantasmagórico fogo-fátuo.

 

Lisboa, 22 de Outubro de 2012

Carlos Vieira