domingo, 2 de setembro de 2012

ESPLANADA



Ontem voltei a sentar-me naquela esplanada no meio do jardim e do país. Mais tarde ou mais cedo, ali regresso como quem está de volta a si. Não sei qual a origem deste prazer que classifico como sublime, de ler o jornal e ouvir através dele o mundo que ali está à minha volta e depois deixar que aquele diálogo se transforme no rumor das folhas, dos risos, em rouquidão, em pura gargalhada, gesto de misericórdia, em sentido do humor fácil e corrente de ar, pontuadas aqui e acolá, por disfarçadas e inoportunas aerofagias e flatulências.
Ali rodeado das pessoas que saem dos artigos e se vão embora sem se despedir, entre repuxos, pétalas, crimes hediondos, descobertas científicas, peixes vermelhos, alterações climáticas ou daquelas outras, que mais soltas e curiosas pousam, à minha beira e espreitam para ler as “gordas” e aspiram o perfume do meu café que arrefeceu de esquecimento.
Literalmente, parece-me estar dentro do mundo e sentir as pessoas que passam e que ficam pairando como se me pertencessem, posse efémera pois claro, já alguém disse, que não há maior isolamento que sentirmos uma multidão dentro de nós.
Talvez nem isso, pois que a minha timidez, denuncia uma certa ânsia em se apropriar da vida que lhe é contígua, resultado do defeito consumista que nos consome – desculpem-me o pleonasmo - por efeito de absorção ou, tão-somente, porque esse voyeurismo dos outros, nos faz esquecer por breves momentos, a dramática situação em que se vai sobrevivendo.
Na esplanada é como se observasse uma exposição em movimento, sentado, faço parte de uma instalação, ao mesmo tempo estou ali, a olhar as pessoas olhos nos olhos, numa espécie de quase ausência de dor e sentimento, de transferência de culpas, de música de fundo, de nuvens no céu tricotadas de folhas e de flores, definindo-lhe o perfil etéreo que nos permite o distanciamento nos desconhecidos.
Assim me entrego, à ternura que deciframos em cada humano momento e saúdo de forma fugaz, tanta gente abraçada à solidão de passagem pelo jardim.
Lembro-me que saía de casa e ali atirado pelas mesas e cadeiras desengonçadas, estudava qualquer assunto muito melhor, sem as interrupções solenes, do sopro da panela de pressão, do puxar do autoclismo, da campainha a que se seguia a conversa da vizinha, a televisão e o rádio, que por serem actos isolados, atingiam na sua magnitude doméstica um peso incomensurável.
Olho para aquele casal de adolescentes, namorados e entendo Chagall, só se sabe muito do amor, quando ainda pouco se sabe da vida. Nessa altura, faço de pássaro, fico atento enquanto eles fecham os olhos e se beijam e o mundo todo fica num equilíbrio instável, boquiaberto naquele abandono. Os pássaros têm essa particular subtileza de baterem as asas e não se perder o encantamento, de poderem revirar a cabeça, sem perderem o sentido do mundo.
Depois há os inúmeros pobres e idosos que percorrem esse território de ninguém e determinam a ocupação dos bancos do jardim, protegidos nas ameias, parecem olhar para o vazio, fazem contas à vida, “passam pelas brasas”, recuperam forças, enquanto acontece o desabrochar das flores, dão migalhas aos pássaros em troca de um pouco de atenção e do gorjear de algumas palavras, por vezes a única coisa que lhe resta para dizer, são essa surpreendente densidade dos monossílabos.
Gosto deles, não desse gosto miserável de ter pena dos velhos ou da sua experiência, das suas inúmeras e incríveis histórias, sobretudo, invejo a sua atitude serena e os seus gestos afectuosos, desarmam-me os espectros das imagens que haviam hibernado no seu olhar encovado, de quem não têm mais serviço contratado e nada mais para fazer, do que celebrar a festa das pequenas coisas, elas também com pouco futuro.
Ali estão eles, o meu elenco de personagens do meu teatro circunstancial, já esquecidos das deixas e do espaço, reinterpretando-se a si mesmos, em cada momento o seu papel, num somatório de camadas de sonhos e de mortes que se cruzaram nos palcos mais ou menos iluminados da sua vida. Ali estou sozinho, na plateia, atento ao desencantado percurso da minha própria vida que percebo um pouco mais que vegetal, nos trémulos gestos dos outros e no rumor das suas palavras distantes
Eis-me aqui, que peço mais um café, tenho que estar bem desperto e deste esqueleto de ferro de pintura gasta, nesta jangada de madeira onde navego, surpreendo na penumbra das árvores as aves e as pessoas que são palavras pairando na minha cabeça, exaustas da busca do caminho para uma qualquer gaiola do amor, desesperadas dessa liberdade de estarem sós, atónitos de serem senhores do seu destino, e de pouco saberem para que lhe serve tanto conhecimento.
Restam os espinhos, o perfume e a beleza das rosas, só espero que a carne e o sangue do seu canto proclamem o crepúsculo no fim da tarde e sirvam de alento às bússolas e ponteiros, aos navios tristes e abandonados que um a um, se levantam deste estaleiro a caminho do norte magnético de suas casas, nesse rumo de regresso a um país adiado.

Lisboa, 2 de Setembro de 2012
Carlos Vieira
 

           “The Café Terrace on the Place du Forum des Arles at Night” de Van GoghVer mais

Na morte de Marilyn



Morreu a mais bela mulher do mundo
tão bela que não só era assim bela
como mais que chamar-lhe marilyn
devíamos mas era reservar apenas para ela
o seco sóbrio simples nome de mulher
em vez de marilyn dizer mulher
Não havia no fundo em todo o mundo outra mulher
mas ingeriu demasiados barbitúricos
uma noite ao deitar-se quando se sentiu sozinha
ou suspeitou que tinha errado a vida
ela de quem a vida a bem dizer não era digna
e que exibia vida mesmo quando a suprimia
Não havia no mundo uma mulher mais bela mas
essa mulher um dia dispôs do direito
ao uso e ao abuso de ser bela
e decidiu de vez não mais o ser
nem doravante ser sequer mulher
O último dos rostos que mostrou era um rosto de dor
um rosto sem regresso mais que rosto mar
e toda a confusão e convulsão que nele possa caber
e toda a violência e voz que num restrito rosto
possa o máximo mar intensamente condensar
Tomou todos os tubos que tinha e não tinha
e disse à governanta não me acorde amanhã
estou cansada e necessito de dormir
estou cansada e é preciso eu descansar
Nunca ninguém foi tão amado como ela
nunca ninguém se viu envolto em semelhante escuridão
Era mulher era a mulher mais bela
mas não há coisa alguma que fazer se certo dia
a mão da solidão é pedra em nosso peito
Perto de marilyn havia aqueles comprimidos
seriam solução sentiu na mão a mãe
estava tão sozinha que pensou que a não amavam
que todos afinal a utilizavam
que viam por trás dela a mais comum imagem dela
a cara o corpo de mulher que urge adjectivar
mesmo que seja bela o adjectivo a empregar
que em vez de ver um todo se decida dissecar
analisar partir multiplicar em partes
Toda a mulher que era se sentiu toda sozinha
julgou que a não amavam todo o tempo como que parou
quis ser atá ao fim coisa que mexe coisa viva
um segundo bastou foi só estender a mão
e então o tempo sim foi coisa que passou.
Ruy Belo


                                                       Marilyn Monroe por sloreXcore

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Morte súbita com flores


 
Morreu de uma apoplexia

abraçado a um ramo de flores

numa paragem de autocarro,

o passe social tornou-se inútil.

Ainda “era novo” o pobre

ou melhor dizendo,

apesar do cabelo branco

estava bem conservado.

Foi uma “morte santa”

sozinho e sem pré-aviso

partiu para o outro mundo.

Ia visitar “a falecida”

ao cemitério dos Prazeres.

Todos morremos

a caminho do cemitério,

e ainda novos,

quase sempre

levam-nos as flores.

 

Lisboa, 31 de Agosto de 2012

Carlos Vieira

 

                                                            “Amantes com Flores” Chagall

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Sonho de lobo polar (Canis lupus arctos)


Nunca cheguei a perceber, por que razão, o lobo polar esta noite me procurou. As alterações climáticas podem explicar, a diminuição da calote polar, a globalização, a qual, invadiu o nosso quotidiano dos mais bizarros personagens e, as nossas noites, de toda a qualidade de fantasmas. Mas não é de excluir, o argumento mais comezinho do aroma mais activo de um “happy meal”, atirado no quintal do vizinho ou de um jantar, em preparação.

De qualquer forma ele ali está, nesta amena noite de Verão, a quilómetros das temperaturas abaixo de zero, farejando por debaixo da tinta preta da esferográfica, as únicas pegadas que deixa, são as letras do abecedário.

Na penumbra onde se encontra, olha numa serena curiosidade, ora para a espantada luz branca do candeeiro, ora para as imagens animadas de um programa de televisão reflectida numa janela, eu espero para ver, quem é que dá o passo seguinte.

Por momentos, achei que era uma alucinação, pois as pessoas passavam no passeio e nem sequer paravam, depois percebi que as pessoas dos subúrbios e das cidades, não se metem na vida dos outros, tem muitos outros problemas e mais motivos de interesse que um lobo polar, perdido da alcateia ou aparentemente marginalizado, sendo verdade que cada pessoa alimenta um ou mais animais exóticos na banalidade da sua vida.

Percebendo que dos inúmeros sinais da noite, apenas a minha silhueta reagia à sua presença, dirigiu-se ainda que desconfiado, para junto do jardim da minha casa e uivou de uma forma que me era familiar, dir-vos-ei que daquela insólita serenata, deduzi que a fome nos transforma humanos em animais e vice-versa, mas que também a abundância pode ser muito empobrecedora na interpretação dos sinais.

Daí a pouco, o pobre bicho arranhava a porta das traseiras da minha casa e gania implorando de uma forma que me humedeceu o coração, um pouco temeroso decidi-me recolher e alimentar o solitário lobo polar, um pouco negligente confesso, em relação ao valor científico da ameaça que representava para a espécie humana e reduzindo a uma interpretação simplista, o facto, da minha pessoa poder pertencer ou não à dieta do animal.

Abri a porta e foi então que a minha gata persa branca apareceu, surpreendentemente, regressada da minha adolescência e deixou ali a os meus pés, um pássaro que tinha caçado, nem sombra de lobo polar, no final ao abrirmos porta da nossa casa, nunca sabemos o que podemos libertar ou quem convidamos a entrar.

 

Lisboa, 23 de Agosto de 2012

Carlos Vieira

 

                                                             “white and white” by RoxiYuki

A educação pública

“A educação pública nunca resolve o difícil problema do desenvolvimento simultâneo
do corpo e da inteligência”
Honoré de Balzac

Poema para mulher com o deserto ao fundo


 

A tua silhueta

se desvanece

te devolve

ao inferno

do nada

nas dunas

de olvido

te deserda

de ternura

e de visão.

 

Tu és a filha pródiga,

e ninguém

recebe de volta:

a mulher

que cega ficou

na tempestade

de areia,

nem a mulher perdida

que traz

o espelho

onde nos voltamos

a encontrar.

 

Te fulminam

te abandonam

não se condoem

sobra-lhe

no coração

a cimitarra

da guerrilha

e da ingratidão

perante

o teu desvelo

de figos

e de mel.

 

Nele

só há lugar

para o golpe

de misericórdia

está extinta

a chama do saber

e cerce o gume

das trevas

degolou

a rebelião

do amor.

 

Querem-te assim

pássaro triste

sede do deserto

lágrimas de bruma

e alma penada

na orla da floresta

depois vai aparecer

na pele do príncipe

que te quer salvar

depois que te quis

perder.

 

O singelo amparo

das tuas mãos

em concha

o acolhe,

teus olhos

de tâmara

ocultos

na vegetação

do oásis

o envolvem.

 

Tu eras a pérola triste

no vazio

do seu coração

no cárcere

do seu corpo

ali emboscados

reside a palavra

pedra

o sangue fresco

assassino

o gesto

e no véu

rasgado

floresces

o relâmpago

do teu vulto

onde evola

o perfume

épico

da tua solidão.

 

Lisboa 23 de Agosto de 2012

Carlos Vieira

                                           "One eyeland desert woman” de Christopher Wilson

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Um lugar à sombra



Ele estava preso
ao grilhão do amor
que não se esquece
na suave memória
um ardor infinito
que dilacera
e em nós vive abraçado
esse anel de calor
que envolve
a tua espera
em eterna sombra
círculo de frio
luar que impede
de reinventar
um outro sol
noutro lugar
uma outra lua
relógio ferido
dor agridoce
mártir do tempo

Lisboa, 23 de Agosto de 2012
Carlos Vieira


                                                     “Live by the sun, love by the moon”


                                                       
                                                                  "Tree tattoo" Maluna