sábado, 25 de agosto de 2012

Amor e morte


 

Não tolera

a leviandade

a perfídia

ou a armadilha

do teu corpo disponível

pouco importa

a labareda e os caracóis

dos teus cabelos

a hora é a sombra

de um tigre

que adormece

é sua a garra

na tua respiração

suspensa

a noite

uma romã

que te devora

 

Lisboa, 23 de Agosto de 2012

Carlos Vieira

“Dream Caused by the Flight of a Bee around a Pomegranate, One Second before Awakening”

Salvador Dali

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Nasceu para ser selvagem



Sabe das pistas da selva
pela tua volubilidade animal
pela insolência das palavras
que proferiste
pelo teu gesto obsceno
no estalido das folhas secas
sob os teus pés
sabe do perigo que corres
na destemida fuga
por tudo isso
afasta-se de ti
embriagado da liberdade
do puro reflexo
das gotículas de orvalho
e por puro instinto
ama agora ferozmente
a natureza
a que pertences.

Lisboa, 23 de Agosto de 2012
Carlos Vieira

                                                            “Woman” By Kubicki

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Poema para um amor impossível


Nunca te perdoará

nem desiste

porque só assim

poderás sobreviver

e só dessa forma

te resiste

 

Lisboa, 23 de Agosto de 2012

Carlos Vieira


                                           “Illusion” from Impossible Love – Dorina Costras

Memória Astral


Lembra-se
que cada beijo e cada carícia
era um pensamento franco
teu rosto ao espelho
era uma estrela independente
acesa no fogo roubado
aos deuses da Terra
que se dispunham
subtilmente
à tua volta
agora és apenas
poeira sideral
dessa constelação
e aos deuses restam
as tuas cinzas.
Lisboa, 23 de Agosto de 2012
Carlos Vieira
 
 
 
                                          De Yayoi Kusma

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Diagnóstico: fractura do fémur




Suas mãos frágeis

são o último esplendor do verão

pousadas nas minhas

pequenos pardais delicados

sem ritmo

desafinados

ou quedam-se na cansada

ternura dos jogos de luz

que se lhe escapa entre dedos

e a fractura.



Seus olhos tristes

a desaprender a vida

pássaros mínimos

e sempre tão brilhantes

que foram álacres

e agora tão mais ávidos

da fractura  

dos ramos e das flores

e da fruta madura



Tua boca de ave

tão pequena

tão poupada de todos os beijos

tão sofrida

das intempéries dos grandes voos

e de todas as mortes

tão só das poucas palavras

de nomear

as dádivas luminosas

que irrompiam das suas mãos

curando tantas dores

e tantas fracturas

o mesmo milagre

do pão e das rosas





Na geografia do teu rosto

aqui tão perto do meu

aqui estás neste ângulo

de há tantos anos esquecido

exactamente

180º à minha frente

enquanto pela primeira vez

te dou desajeitadamente

uma colher de sopa

e nela avalio

o gesso das fracturas

de todas as mães.



Fico à tua espera

daquele teu golpe de asa

em forma de sorriso

durante todo o tempo da visita  

pela primeira vez ali estás

sortilégio de carne e osso

entre lençóis brancos

minha flor renascida

minha mãe mais dura

heróica e triste

que a mais esta fractura

da vida resiste

no meio do meu poema

levanta-se e anda.





Leiria, 18 de Agosto de 2012

Carlos Vieira



                                                                   Chagall – “Flight”


sábado, 18 de agosto de 2012

universalidade





pronto

aqui me encontro

envolto num turbilhão

de fumo branco

um pé firme na Terra

uma mão cheia de nada

ausculto o eco das letras

nas palavras ditas

sondo-lhe o encanto

na voz rouca do vulcão

no primeiro voo da escrita

quando a sós

na vertigem do céu

de um qualquer poema

ousamos o mistério e o fogo

e se desatam nós de espanto

frente à imponência do caos

que moldamos no barro

helicoidal e paciente

na curva da idade

que nos permite distinguir

o fulgor e a errância

de cada ponto

na miríade de pó suspenso

a tristeza vencida

dos rostos cintilantes de gente

que em cada estrela distante

são a semente prenhe

dos sonhos

na sua elipse de regresso

à humanidade



Porto de Mós, 18 de Agosto de 2012

Carlos Vieira

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Chuva de Verão

Lá fora
chove no jardim
em agosto
dentro de mim
solta-se
o teu véu de seda
de ave táctil
e incansável imaginação
tecida
em puro acaso
notável descoberta
seminua
eras tão fresca e frágil
fora de mim
brisa do murmúrio
de um tempo diáfano
por ti caíam as bátegas
leves lâminas
nas asas do desânimo
no fim da tarde
o veneno dos segredos
por revelar
para surpresa da água
reconheço-te imaculado
corpo que foste antes do pó
e de refletida mágoa
serás sempre
quando fores fora de mim
 erguida estátua
onde já só irá correr
a memória de um amor
censurado
ali exatamente no coração
do lago
morto de sede e dos olhares
de pedra
assim permaneces
incólume e inexpugnável
meu bravo rio interior
do início da viagem
sem regresso
do medo até  à luz
sobre a suave alegria corroída
da acidez  do teu silêncio
e da chuva
áspera é a minha mão
que te percorre
o rosto
temperada pelo bálsamo
das tuas lágrimas  
apenas saberás de mim
que é Agosto
e que chove de novo lá fora
no jardim
agora que és esta imagem
que ficou de ti
já sinto de novo
a passagem do tempo


Lisboa, 16 de Agosto de 2012
Carlos Vieira