sábado, 21 de julho de 2012

à espera das palavras


I

aqui estou eu

diante da folha branca

camponês frente ao baldio

enquanto espero à sua beira

pelo rio das palavras

o canto livre

dos pássaros inquietos

corre-me nas minhas veias

na respiração das árvores

fico preso na gaiola das ideias



II

aqui fico

de olhar perdido na planície

como um pastor

olhando as palavras tosar a erva

e um lobo a crescer dentro de mim

depois junto-as todas

ponho o texto no bolso

chego ao fim do dia

e na minha cabeça a latejar

o dolente ruminar dos animais

o fulminante silêncio da noite

onde tosquio as ovelhas

e as palavras

uma a uma



III

viajo neste comboio

nesta sucessão de túneis

oiço o riso fresco

das florestas

e das mulheres

conheço os precipícios

sei das assombrações

o meu cérebro

é um deserto atravessado

pelo gemido metálico nos carris

a quietude das passagens de nível

sobre a esquecida estação

a corrente de ar

uma película de poeira

de grãos de areia e palavras

repousa ínfimo

o peso do meu corpo

à espera de vida





IV

navego na profusão do azul

distingo gaivotas distantes

na bruma

palavras que ganharam asas

nas nuvens se confundem

e com a espuma

todo este mar e estas aves

porém de nada me servem

estes círculos

de puros abraços

e tristezas suaves



Lisboa, 21 de Julho de 2012

Carlos Vieira

                                                 "Alone in the field” de autor desconhecido


sexta-feira, 20 de julho de 2012

fin d'ete - end of summer

Melinda Ligeti Trio - Blue / artwork by Gustav Klimt - Music

The ... «Melancholia» of Wynton Marsalis

Rescaldo



a língua de fogo
devora-nos a floresta
o peito e a página
do mundo 
e no rescaldo
um brinquedo
deixado à pressa
entre as cinzas
de um poema
o eco dos pássaros
as estrelas do céu
nos homens sem tecto
alargou-se a clareira
no seu olhar extinto
de carvão
nas suas palavras
extenuadas

e sem chama
ainda assim
na desolação

por entre queimaduras

de todos os graus
anuncia-se  débil
o reacendimento
da esperança

Lisboa, 20 de Julho de 2012
 Carlos Vieira

                                          Virna Haffer “Abstract # circa 1960s. Photogram

pouco conseguido poema para uma despedida



despede-se

a timidez já tarde

o súbito ruído insuspeito

revela-me a sua tez

que perde o pudor

doce é ainda o alarde da nudez

perante o rubor do acorde

que lhe morde a pele

no silêncio dos ombros

e o breve susto

sob a luz quase lúgubre

depois do rodar da chave

derramava-se o mel

na penumbra do aposento

a sua astúcia lasciva

pelo meu território lacustre

e durante muito tempo

ainda pairou teu aroma insalubre

vence-me o contraste da raiva

depois que fomos

uma tristeza esquiva

rendido à vã glória

do que foi ilustre

quando voltamos

ao dilema do mestre

libertar-se da febre do saber

ou do medo da peste de amar

a oeste tudo de novo

até que a morte nos separe

no fulgor do lustro

ficou a terna nódoa

memória da tua presença

do suor da tua casta mão

a incomodidade da lasca

o desassossego do sangue

adivinho o teu corpo aceso

sob a transparência

das tuas vestes de linho

tua chama eterna

depois da cortina

bruxuleante bailarina

ardil de lanterna

ou da minha imaginação

ardendo do combustível

que é agora a solidão

dos nossos corpos nus

e ausentes



Lisboa, 20 de Julho de 2012

Carlos Vieira


                                                     Pintura de Kandisnky “Farewell”

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Constelação


Nesta viagem

este insólito regresso

ao teu exílio no firmamento

onde és o inverosímil solstício



Sai ágil e nua

de dentro de si

e reconstroem-se inebriantes

os cheiros da casa nesse céu primordial



Ali ouves o apelo

e a aritmética distância

a espuma e o mar revolto

e na falésia o farol que em ti naufragou



Na janela solta-se

a inesperada ave

de par em par noutro país

o teu reflexo e sua inédita integralidade



Depois dos frémitos

da ternura

dos sonhos e seus fragmentos

o seu olhar era a exacta eloquência do equinócio   



Lisboa, 16 de Julho de 2012

Carlos Vieira





Constellation - Awakening at Dawn-Juan Miró