sexta-feira, 13 de julho de 2012

Intercomunicabilidade


abre-se um pôr do sol

nas extensas asas da cegonha

depois fica ali depenicá-lo



no intervalo o murmúrio

das chamadas de longa distância

germinam cegonhas e flores acesas



nos campos de arroz as cegonhas

cruzam-se fios de conversa

e o triplo salto das rãs em fuga



a cegonha dorme seu sono solto

sustendo-se numa pata

sua consciência tranquila na outra



a cegonha humilde e de pé

pelo buraco da branca chaminé

espreita a fome negra



ás 17h30 o matraquear das cegonhas

algures num país desenvolvido

o homem morre na cadeira eléctrica



a cegonha leva no bico comprido

as linhas curvas do rio e um peixe

é um grito entalado na garganta



a cegonha tem o comboio no bico

no poste do telefone em equilíbrio instável

o horizonte é sempre inconsolável



o coração vivia nas trevas

a límpida cegonha e o relógio da igreja

era sua a clarividência da cal



o ninho redondo e amável

um incêndio e no curto circuito de verão

as três cegonhas atónitas



Lisboa 13 de Julho de 2012

Carlos Vieira



Foto in Photoblog600


terça-feira, 10 de julho de 2012

Pequena história de um Reino cercado pelo nevoeiro e de um cavalo branco




Da névoa se libertou o cavalo branco, desferiu coices de espanto na romântica paisagem,

cuspiu da garupa o príncipe, a donzela, a aia, acorreu a soldadesca e toda a criadagem,

ali estava caído por terra o futuro do Reino, arrastou-se a real família pela fria realidade

da lama.



Não foi um golpe de Estado, foi apenas um acidente, felizmente sem consequências, mas

naquele dia, no  palácio foi o assunto do dia, foi até emanado um clarividente decreto que

 proclamava que nas próximas montarias, não se iria mais arriscar, em tempo de bruma com o

 tão irrascível cavalo  branco, não se poderia ser tão temerário com a rédea que se lhe dava.



Constatou-se no entanto, após aquela queda, que o príncipe passou a saber o que era tomar

banho, a princesa já deixou de ressonar e os criados recuperaram a fala, subiu o grau de

 prontidão dos militares.



Nos jardins do palácio pode agora passear o cavalo branco, beber de um trago toda a água do

lago, trás uma rosa atrás da orelha, olha-se ao espelho, salta os obstáculos da realeza para

realidade e vice-versa, foi nomeado herói nacional pelo relevante serviço prestado à Nação,

podendo a partir de agora,  usufruir o direito vitalício a usar o freio nos dentes.



Lisboa, 10 de Julho de 2012

Carlos Vieira



                                                  “Hedgehog in the fog” por Yuriy Norshteyn

Pau de fósforo


pau de fósforo

mínima parcela do pinhal

que acenou seu verde gesto

sobre o horizonte azul-cobalto

onde se festeja a melancolia do sal

de que o vento pouco a pouco se despediu

e escondeu o ninho e sustentou o primeiro voo

sucumbiu na queda da árvore e viu à luz fluorescente

da fábrica erguer-se a lâmina que cerce lhe desenhou seu futuro

e moldou a vermelha substância que um dia se acendeu em flor efémera

depois do desesperado cigarro foi o sopro e a pirueta pelos ares impulsionado

última memória antes da vida espezinhada e agora subitamente uma piedosa mão

lhe deu o destino de travar a janela permitindo à brisa fresca reconhecer naquele corpo

o perfume do pinho verde e a resina que de si brota ténue rastilho que a enlouquece apenas

de espreitar as sombras que se apagam na placidez do parque atormentando a carne do Verão



Lisboa, 9 de Julho de 2012

Carlos Vieira