quinta-feira, 7 de junho de 2012
Apátrida
os teus dedos
a tiritar
são afluentes do silêncio
corvos pousados algures
num antigo nevoeiro
e depois do adeus
sem olhar para trás
as palavras que te
conhecia
abandonam-me uma a uma
perdi-te
agora resta-me este exílio
de colher as flores e os frutos
sem partilha
sem te encontrar à esquina
sem largos de coração aberto
e mãos de sol e a luz dos sorriso
iluminando o teu rosto
sem a alegria breve
dos teus gestos mansos
sem fronteiras
agora
não tenho pressa
ou essa pátria de chegar a casa
de sentar à mesa
e de te olhar
depois da eloquência do pão
agora perdi o fio da história
sou atónito
perante o silêncio das ruas
em que te conheciam pelo nome
passas friamente pela berma do olhar
temes o confronto
escondeste-te de todas as tempestades
tu que sempre foste temerária
e colhias as estrelas
e fazias delas os beijos
que conheciam os céus e os abismos
sou apátrida
neste novo país em que vivo
sem ti
de onde não saímos
desta vergonha
do que somos
em viagem
agora
somos desta imensa tristeza
que acorre num só olhar
ancorado em tanto desalento e medo
de tanta ruína e pedra solta no caminho
de tanta separação
e não querer chegar
eis-nos aqui mais sós
e menos independentes.
Lisboa, 7 de Junho de 2012
Carlos Vieira
terça-feira, 5 de junho de 2012
Poema para um emigrante
Não sei como
foi que aqui chegou
E tendo
chegado já partiu
Sabendo o
que ganhou
Não sei o
que perdeu
Para onde
foi
O que encontrou
à sua espera
Não sabe quem
estará aqui
Nem será
aquilo que prometeu
E se um dia
regressar
Não será
mais ele
Aquele que
na dor viram partir
Ainda menos
aquele
Porque anseiam
Na esperança
do reencontro
E neste
deambular
Nesta errância
Estando tão
presente
Cegos estarão
todos
Quando chegar
De tocarem a
sua ausência
Abraçando o
país deserto.
Lisboa, 5 de
Junho de 2012
Carlos
Vieira
segunda-feira, 4 de junho de 2012
Poema promíscuo
Promíscuo
tropecei hoje
nesta palavra
no saguão do
desalento
onde te
encontro
reviram-se as
minhas córneas de espanto
olho para o
mundo
que apodrece
dentro de nós
depois do
vómito nauseabundo
cresces flor
heróica
no momento
sujo
regas a
terra
espreito a pobre
semente
a desaguar na
imundice
o
desabrochar
contra a ausência
de alento
ouço a sua
voz líquida
e fico
ofuscado
na luz insaciável
do teu ventre
a ferrugem
corrói a noite
e o zinco
a humidade e
as aranhas
percorrem o
bairro social
no seu
esforço de coesão
a lua não é
precisa rigorosamente para nada
nem para as
ligações diretas
os filhos
dormem no mesmo quarto
único
uma suite
onde adormece
a vista do mar
oiço-lhe o choro
e acorrente
de ar
pode ser
apenas um arroto
podem ser gases
nem te passa
pela cabeça
que seja da fome
enquanto
dormem não comem
dos oito pontos
brancos
descortino
dois a um
canto acesos
pode ser o
gato
o gato não
conhece outra vida
olha com
desprezo
para os
homens perdidos
na noite
ali ao lado
passa o esgoto
e passas tu
que és da rua sem nome
do lote inacabado
da decadência
da alegria
noto a diferença
do branco dos
teus olhos
que saem pela
portinhola
antes do mur(r)o
de desespero
na gaiola do
desemprego
coabitas com
um canário amarelo
contente da
alpista
e desconhecedor
dos problemas
de
saneamento básico
no fundo não
é assim tão mau
podem dar
largas à imaginação
Lisboa, 4 de
Junho de 2012
Carlos
Vieira
domingo, 3 de junho de 2012
Camões dirige-se aos seus contemporâneos
Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
Que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
Para passar por meu. E para os outros ladrões,
Iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.
Jorge de Sena
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
Que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
Para passar por meu. E para os outros ladrões,
Iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.
Jorge de Sena
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