não te esqueças
de fechares a janela
gostava de ver-te espreguiçar
sobre aquela invasão do canto dos grilos
e o omnipresente perfume das nêsperas
de permeio
podes proclamar breves palavras
e elas serão para mim
a senha e contra senha de acesso ao infinito
do teu corpo e alma
de onde nunca saí
não te esqueças
se a brisa soprar fica quieta
para que te possa vislumbrar
nos teus cabelos compridos
e sobrevoar o claro escuro
dos teus ombros nus
ou será do teu pescoço?
sempre tive medo das alturas
tu és o peso exacto
neste instável equilíbrio
das nuvens
do pensamento
onde sobrevivo
com raiz no teu olhar
só me interessa a tua plenitude
não te esqueças
que os gatos devem ficar na rua
e os deuses também
pendurados nas árvores do jardim
a espreitarem os lagos
nessa aprendizagem difícil e nocturna
do convívio com os pássaros e os peixes
permitindo que te possa de novo ver acordar
cuidando que o teu esplendor
seja maior que a madrugada
não te esqueças
toma um banho de imersão
e toca piano
cuidado não te vás afogar
naquele sonhado andamento
onde nos deixámos
ou te falte o ar
numa bolha de solidão
e tu seja apenas
a cor que me perde
a espraiar-se morena
no território da tua pele
vencendo a água
libertando-se do vapor
e da carne
não te esqueças
deixa a luz da varanda acesa
para que os insectos e as feras
sofram do desespero da tua ausência
e te abandonem definitivamente
e tu fiques ali
pairando
sem nunca te entregares
sem nunca seres só pra mim
não te esqueças
podes ler umas tantas páginas de um clássico
e depois põe aquele sorriso ténue
de olhar distante
saberei do perfume dos teus dedos
virando a página
nas entrelinhas eu vou escrever
secretamente
outro alinhamento para o espaço
do amor possível
não te esqueças
despe a tua camisa de dormir pérola
com motivos chineses
como se fossem folhas de cerejeira
e se te olhares ao espelho
eu ficarei de novo cego
entre a nudez espelhada e a outra
sem saber qual a diferença
a fronteira
sem saber se tu existes
sem ouvir o que se diz
o amor sempre desvanece
na coisa amada
não há país real
Lisboa, 14 de Maio de 2012
Carlos Vieira