domingo, 3 de abril de 2016

Texto de gente acossada



Viver acossado, em quotidiana guerra civil, sem saber para onde fugir ou optando por um sinistro desconhecido, sem casa, sem escola, sem saúde, é algo estranho, exótico, para este nosso mundo, não nos diz respeito, faz parte de outra humanidade!
Nós somente vivemos acossados pelo último grito da moda, pelo peso e pelas dietas, por consumo, pela cilindrada, por prestações, pelo elevador social, pela difícil escolha do destino de férias, pelas escapadelas,pela insegurança, pelas intempéries, vivemos a vida que outros nos vendem e estoiramos o cabedal, tal é conforme a nossa humanidade!
Que raio de bichos somos nós e qual deles nos mordeu?
Que estranho estão a bater-me á porta. Qual dos representantes da humanidades um dia nos pode bater á porta, sim porque nós não temos nada a haver com esses mundos.

Lisboa, 3 de Abril de 2016
Carlos Vieira

Balada da Neve

Batem leve, levemente,
como quem chama por mim.
Será gente?
Gente não é, certamente
e a chuva não bate assim

Augusto Gil

sábado, 2 de abril de 2016

Tenho uma profunda...

tenho
uma profunda
e contraditória atração
por tudo o que é ténue
pela precariedade
lá chegará o tempo
da tirania da eternidade
Lisboa, 21 de março de 2016
Carlos Vieira

a vida...

a vida
é essa artimanha
paciente que o tempo
nos demorou
a urdir
Lisboa, 2 de Abril de 2016
Carlos Vieira

Na praia da Nazaré ninguém pode ficar de pé


Salpicos de espuma
na contenção
do seu rosto
o rumor de sal e iodo
deflagram
um fulgor de ignição
no desgosto
e na sétima vaga
na zona de rebentação
talvez lhe traga
mais que da alegria
breve o fruto
da aceitação
ou se conjugue
o amor
em turbilhão
e talvez o mar
dela se condoa
e a leve a ela
e ao luto
e à impossível
solidão.
Lisboa, 2 de Abril de 2016
Carlos Vieira

Pintura de Edward Munch

L'hotel

L’hotel
Ma chambre a la forme d’une cage,
Le soleil passe son bras par la fenêtre.
Mais moi qui veux fumer pour faire des mirages,
J’allume au feu du jour ma cigarette,
Je ne veux pas travailler — je veux fumer.

Guillaume Apollinaire



Falsificação grosseira de um sonho de Van Gogh


Sonho
este sabor acre
e o tom ocre
no silêncio caiado
o serpenteado
das ruas
de casas térreas
e a tinta lascada
das portadas
os olhares crus
emboscadas
nas cortinas
de tule
gosto do zumbir
de insectos
e de o burro
a zurrar
a inquietar a tarde
nessa altura
será perfeito
se houver um corvo
ou o adeus de ouro
de um campo de trigo
entre o cobalto azul
e o véu da nuvem
sonharei
no meu pastel
de pigmentos
de girassol
o retoque final
em que de pé
tocarei o céu
alguém mais atrevido
poderá comentar
que me caiu
uma estrela
na paleta.
Lisboa, 2 de Abril de 2016
Carlos Vieira

Tentilhão

Tentilhão
brinquedo de sol
e asas
de lés a lés
sobrevoa 
em linhas
sinuosas
em elipses
em loucura
o quintal
canta e canta
inaugura
a primavera
no delicado
equilíbrio
de nylon
da corda
do estendal.
Lisboa, 21 de março de 2016
Carlos Vieira