sábado, 15 de novembro de 2014

Nada na manga...

Nada
na manga
nada no colarinho
sem truques
de esquerda baixa
tudo jogo limpo
sem cartas marcadas
usando apenas a ilusão
da luz velada 
e de asa de sombra
da força excessiva
que te torna frágil
e da preciosidade
imaterial
dos interesses
que nos desconcerta
caleidoscópio de imagens
de encantantatórios
afectos
que nos invadem 
e moldam o espírito
e que por vezes
nos atrevemos
a chamar poesia.

Lisboa, 14 de Novembro de 2014

Carlos Vieira 

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

No meu portfólio


No meu portfólio
levo o sorriso
 a espraiar-se no teu rosto
flor bruxuleante
que fere
o azul metálico
no céu do barlavento

no meu portfólio
arquivo
as tuas mãos
molhadas
no ninho do teu colo
em silêncio pousadas
depois de me libertarem
do caos
com teu enleio
soltando as cores e os aromas
de um qualquer jardim

no meu portfólio
existes quando
desces a alameda
dos sonhos
com aquele vestido negro
e de braços nus
e tu atónita
embevecida
a ouvir um violino
estremecias
por cada nota em falso
que divergia
a cada tinir de moeda
que num boné
caía

no meu portfólio
ainda te reconheço
a preto e branco
tu que ali vais
em paralelo
sem nunca te encontrares
com aquele rio escuro
por sua vez
o rímel descia
pelo teu rosto
máscara
de uma alegria húmida
que se foi desvanecendo



no meu portfólio
do meu desvelo
tenho neste envelope
um pedaço de ti
recordo-te
teu cabelo castanho
em desalinho
depois de um confronto
inesperado
com o vento
sobes rua acima
focada em resolver
definitivamente
aquilo que por ti própria
nunca poderias
conseguir
fora de ti

no meu portfólio
guardo ainda
naquele retrato
límpido
esse olhar
onde descansei
que nos iria
levar para dentro
da gruta
das nossas Mil e Uma Noites

no meu portfólio
não posso esquecer
que trago protegido
das intempéries
e dos fragilidades
dos momentos
a imagem fulgurante
de quando me esperavas
na esplanada em tons de sépia
pássaro do eterno
desassossego
inquietação
de qualquer lugar

no meu portfólio
este flagrante
de quando chegavas
à estação do Parque
um pouco descuidada
indescritível
era porém a tua ternura
subterrânea
apanhávamos
a última carruagem
e o teu corpo desesperava
pela avidez
de uma haste de sol

no meu portfólio
a lanterna
do arrumador
encontrava-nos
num recanto
da terceira fila
do enlevo
de amor recente
com o brilho  
do foco de projector
por cima das nossas cabeças
a atravessar o tempo
os gestos mínimos
da cumplicidade máxima
de um desejo sem tecto
adolescente
das legendas a embaciarem
e o fogo dos teus lábios
a enxamearem
a última sessão de um filme
que para sempre
havíamos de desconhecer
o final

no meu portfólio
aquele fragmento
de mar cortado
pelo picotado
numa praia de inverno
ali perto
e nós presos pelas garras
de uma paixão
sem piedade e sem espaço
éramos sobrevoados
por toda a imaginação e asas
de gaivota
num ruído ensurdecedor
de sangue
e grasnidos polifónicos

no meu portfólio
por vezes
chega-me à memória
o cheiro a resina no pinhal
a que se sobrepôs
o néctar
decorrente do teu corpo
a desenvoltura 
das tuas pernas brancas
e dos pinheiro verdes
a rodopiar
a rima
das feridas nos troncos
e da insondável solidão
de musgo
no percurso insaciável
dos meus dedos

no meu portfólio
ali estavas
na tua beleza inacessível
de estátua de alabastro
com sonhos de aurora boreal
nunca te compreendi
nesse dialecto
de deusa
que atravessou todas as noites
da minha recorrente utopia
e se te abracei depois
se sobrevivi
neste fotograma
da eternidade
no cloridrato de prata
foi porque
já não tenho medo da morte
e cego de olhar o sol
e na partilha
de uma inadiável demência
nos possuímos
num inexplicável  infinito
a dedilhar carícias.

Lisboa, 13 de Novembro de 2014
Carlos Vieira


“Fragmentos de vida”  de Marta Orlowska


terça-feira, 11 de novembro de 2014

folha 5



de folha caduca ou perene
qualquer que seja
na superfície da sua pele
pode ler-se e ouvir-se sempre histórias
de assombrações e fotossíntese
nos intrincados deltas
das nervuras
na subtileza dos filamentos
de penugem
iluminados pela alegria tranquila
dos subterfúgios de clorofila
delimitadas
pelo desastrado recorte
ou delicada renda
que os crepúsculos
desenham
a borboletear ao sabor da brisa
enquanto se insinua
um perfume
onde se amansa ou se precipita
a irracionalidade de todos os animais
ecoa a sinfonia
que irá antecipar o rumor dos pássaros
e deflagrar seu canto emboscado
na solidão das copas
e no desespero dos troncos
que se contorcem
conforme é perene ou caduca
a folha de árvore
em que se vive
pega-lhe pelo pecíolo
como quem ergue um poema
e na sua leveza
olha-a em êxtase
na contraluz
rendido
confessa-lhe
os últimos versos

Lisboa, 11 de Novembro de 2014

Carlos Vieira


folha 9


a parra
que esconde o sexo
enrubesceu
Lisboa, 11 de Novembro de 2014
Carlos Vieira

folha 4


falta-nos
a respiração
perante a beleza
e o perigo
dos elefantes
a andar de nenúfar
em nenúfar
Lisboa, 10 de Novembro de 2014
Carlos Vieira


folha 3


a folha
de plátano
que foi lança
vermelho vivo
resistente
voou da árvore
e foi na dança
amarelo torrado
agora aos tombos
em agonia
desce a escada
íngreme
feita farrapo
exangue
talvez
o vento
lhe pegue
e a leve
até mão
de criança
que a adormeça
no herbário
junto da família
do limbo
das lanceoladas
Lisboa, 10 de Novembro de 2014
Carlos Vieira


folha 2


três seixos vermelhos
e uma folha verde
pequenas artérias 
e poros de luz
reinventam o mistério
exorcizam
toda a obscuridade
Lisboa, 10 de Novembro de 2014
Carlos Vieira