terça-feira, 15 de julho de 2014

Nesta manhã...

Nesta manhã
cego pela neblina
hei de colher
os figos pingo de mel
que te prometi
e depois soltar
teus olhos
empoleirados na solidão
dois pássaros
a debicar
no meu deslumbramento
sem futuro.

Lisboa, 15 de Julho de 2014
Carlos Vieira


segunda-feira, 14 de julho de 2014

A coincidência das palavras 2



Perseverar
na busca da palavra
que renova o ar
e no reverso 
o pássaro em voo
reconstrói
e se esmaga
na urgência do beijo
ponto de luz
que emerge na manhã
aroma que fere
na corola da noite 
piano de cauda 
onde um gato doméstico
insiste na tecla
do coração
e sílaba a sílaba
inventamos a vertigem
do texto
onde não fica
pedra sobre pedra
e um vocábulo
se ergue erecto
émulo 
do diálogo das estrelas
linguagem 
de um ângulo aberto
e mais perene
sublimando 
a expressão rasa
de outro mundo
para onde convirja
a eloquência
da descoberta
de uma nova 
humanidade.

Lisboa, 14 de Julho de 2014
Carlos Vieira

Hora da criação



A minha mãe 
tem quase oitenta anos
os ovos que me deu
estavam quentes
ainda há pouco 
os tinha tirado
debaixo da galinha
a minha mãe 
é um poema 
que sai da capoeira
com um pequeno coelho 
que entrega à neta
esta passa
as suas pequenas mãos 
pelo pêlo macio
enquanto o focinho
laborioso
rói a cenoura
aos meus olhos cintilantes
e da minha filha
tudo isto é magia
os ovos e o pequeno coelho
a ternura da minha mãe
há também quem lhe chame
poesia.

Lisboa, 14 de Julho de 2014
Carlos Vieira



domingo, 13 de julho de 2014

Ladram os cães...

ladram os cães
ao desafio
nas casas
do fim da aldeia
não descansam
enquanto 
a noite
não abocanhar
o intruso

Lisboa, 12 de Julho de 2014

Carlos Vieira

Ontem a minha vizinha...

ontem 
a minha vizinha
prendeu com uma mola de roupa
a lua cheia no estendal

Lisboa, 12 de Julho de 2014

Carlos Vieira

sábado, 12 de julho de 2014

Fui ao quintal...

fui ao quintal
não distingo
a neblina nocturna
do fumo do meu cigarro
um pássaro e um gato 
num jogo de sombras
ignoram
a minha presença
destacam 
essa irrelevância

Lisboa, 12 de Julho de 2014

Carlos Vieira

A pobreza desavergonhada II



Só tem a roupa
que traz vestida
um andrajoso farrapo
desfraldado estandarte
suave tecido
em que começa a viver
a morte
ainda bem que é Verão
e moda o rasgão 
está leve
só lhe dói a fome
não lhe pesa a carne
sempre sobra
alguma coisa
no caixote de lixo
mais perto de si.

Lisboa, 12 de Julho de 2014

Carlos Vieira