sábado, 28 de junho de 2014

Discernir



Discernir
é uma palavra
que me atrai
e isso me impede
de lhe descobrir
o cerne
dando-me o ânimo
para prosseguir
escravo
do seu mistério

ir até ao cerne 
da palavra
é de alguma forma
como ir
ao centro da terra
e voltar
o que nos reconduz
a decantar
a luz e o sal
e inventar
o princípio do mundo

perceber
a força que emana
da fragilidade
translúcida
do cristal
da voz
e voltar a discutir
o adquirido
admirando-o
de outro ângulo
um átomo
que saboreio
no céu da boca

e na fragância
que a flor exorta
possuir
a essência
verdadeira
e do momento
extrair a precária
beleza da corola
e a silenciosa
clarividência
e equilíbrio
do caule
que a sustenta

e neste jardim
submerso
ficar sem respirar
perante
a quietude
dos animais
e das plantas
sem esquecer
que na superfície
aparente
das palavras
se esconde o grito
e a angústia 
do amor que não
corresponde
e a incapacidade
de discernir
as muitas mortes
de quem ama.

Lisboa, 28 de Junho de 2014
Carlos Vieira



sexta-feira, 27 de junho de 2014

Pássaro ferido




Oiço do outro lado 
da solidão
um ruído estranho
de animal
ou de respirar de ladrão 
abro a porta
repentinamente
e bateu a asa ferida
o pássaro
que se tinha
ali aconchegado
na soleira da memória
de par em par
abri o futuro ao poema
que nasceu
para acolher a ave
que sem querer
lhe bateu à porta.


Lisboa, 27 de Junho de 2014
Carlos Vieira


quinta-feira, 26 de junho de 2014

Percalços



de quem 
gosta de andar descalço

de quem
deu um passo 
em falso
na sua busca 
da verdade
e nunca mais
se encontrou

um pequeno percalço
risco
entre a realidade
e a cópia
um grande salto
para a humanidade

se vive
a liberdade
com a solidão
no encalço

por vezes
tudo é apenas 
uma simples
questão 
de perspectiva
e luz

de quem um dia
deu um passo em falso
deixou de andar descalço
e vive agora a pairar
suspenso
da noite dos tempos

Lisboa, 26 de Junho de 2014 
Carlos Vieira




terça-feira, 24 de junho de 2014

Caiu da tua mão...

caiu da tua mão
o lápis
e partiu seu bico afiado
porém ficou
intacta sua alma 
sua coluna vertebral
de grafite
e continuou a sonhar 
risco após risco
a perspectiva
o esquisso 
de um outro voo

Carlos Vieira

Amor impraticável



Silêncio aflito
grito estrangulado
palavra murmurada
ave derradeira
véspera de água
desterro de um barco
corpo inanimado
tempestade crua
olhos marejados
sonhos soterrados
percorre a rua alagada
no oportuno apagão 
a ferida interrupta
é uma janela aberta
para o abismo
um sorriso esquecido
naquelas mãos acesas
esse peixe exausto
e assustado
cresce a árvore exuberante
por detrás
do beijo surpreendente
acreditamos agora
na inacreditável substância
das nuvens
respirando
no calendário dos meses
onde a solidão
inventa o desabrochar
das flores e das aves
em noites de insónia
onde amadureceu
a nascente 
do néctar indizível
dos cantos 
que fazem vibrar
os inquietos materiais 
com que são feitas
todas as horas 
em que pede descanso
um olhar
depois que regressa
ao carrossel
dos recônditos perfumes
de um aroma
em que acontece
a insensata veemência
do amor
que não se pode tocar
nem se pôde saborear.

Carlos Vieira

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Sem amor nem distância



nesta prisão de verde triste
apenas um pássaro pia

responde-lhe um trovão
da vastidão do azul

neste diálogo de surdos
o poeta representa
a humana ignorância

de querer ver sempre mais
para lá dos humanos sentidos

e assim se vai perdendo
na volúpia da distância

Lisboa, 23 de Junho de 2014

Carlos Vieira

domingo, 22 de junho de 2014

O fogo posto de palavras



Toco as palavras
escaldam
incandescentes
espadas
no meio da planície
da batalha
deslembradas
sem sombra por perto 
ou pássaro 
que no seu canto
delas se condoesse
palavras 
que ardem na garganta
e queimam os lábios
arrancadas 
na urgência do coração
pedras lascadas
para a caça
da sobrevivência
afiadas
no cume da solidão
das montanha
palavras cansadas 
do diálogo vazio
antes da cinza
nunca ditas
que iluminam o silêncio
nunca caladas
pelo fogo eterno
de toda a Inquisição
penduradas no poema 
feito de palavras 
na injustiça da pele 
marcada
e em carne viva
sem história
e sem remédio.