domingo, 4 de maio de 2014

A natureza morta do inviolável envelope


A carta
jaz neste domingo
em cima do tampo
um pingo de lacre
no vértice da aba
desfaz o branco
imaculado
daquele selado
rectângulo
num silêncio de cela
a luz incide
sobre ela
e quase a faz pairar
pergunto-me
se viverá um pássaro
lá dentro?
dali parece vir um rumor
longínquo
o tremor de uma voz
cá fora
não há sombra
de remetente
um aroma
a tinta permanente
ainda persiste
sobre
a mesa a reluzir
contra o vazio 
das mãos
em luta 
contra o destino 
aquele envelope 
por abrir
é o único objeto
que resiste
e me é vagamente
familiar
na casa devoluta.

Lisboa, 4 de Abril de 2014
Carlos Vieira


sábado, 3 de maio de 2014

Vidas paralelas



Susteve a respiração
encostou-se à parede
com o lenço limpou o suor 
do outro lado da rua
reconheceu o seu rosto
não, não poderia ser
pois agora colada à pele
tinha esta máscara
sem rugas e sem dor
já não suportava viver
de novo as duas vidas
paralelas espiando-se
incansavelmente
do outro lado do passeio
perguntava-se agora
que poderia ser da sua vida
como é que podia a outra 
ter sobrevivido.


Lisboa, 3 de Maio de 2014
Carlos Vieira



Um esquilo...

um esquilo 
ágil rumor de luz
pretextos de amêndoa
entredentes

Lisboa, 3 de Maio de 2014
Carlos Vieira

Logro


Foi o desassombro 
do teu gesto
incrédulo 
perante a turbulência
das palavras
que te tolheram
agora ela molha
os pés
tu poderias ser 
a vertigem das ondas
caíste 
na tua própria armadilha
de nào saber medir
a distância
que vai do olhar aceso
à antecâmara
do desdém
essa diferença de brilho
e ali ficaste tu enredado
da inábil leitura 
ancestral a que a miopia 
do coração te expôs.

Lisboa, 3 de Maio de 2014
Carlos Vieira


Mikado



vou jogar contigo 
o mikado
desnudar-nos
sem sequer
pestanejar
perde
quem não aguentar
a urgência
de um beijo

Lisboa, 3 de Maio de 2014
Carlos Vieira

Pó-esia


O poeta
é um bicho atento
a todos os sinais 
ao ínfimo átomo da natureza
laborioso intérprete
de detalhes
outras vezes
é só sublime momento 
uma viagem de pura tristeza
dos pequenos passos
e múltiplos apeadeiros 
da humanidade
a enganar o tempo
dentro de si sonâmbulo
corre o sangue
de toda gente 
e da que já se foi
e todas dores do mundo
do último sobrevivente
até ao seu derradeiro momento
fora de si não há arma 
ou voz épica 
ou artificiosa vírgula
estratégica subtileza
que o cale se furibundo 
ou o afuguente
do seu manso retiro
o poeta
é o nada que se inflama
o fogo que a si próprio 
se devora
de todos e cada um de nós
é emoção de um silêncio
de pó que se levanta
e que ao descer à terra 
se reiventa
em decantada poesia
pigmento de pintor
renascentista
feitas de metal precioso
e de excremento
poeira eterna e exangue
sem contra-indicação
que corre no coração dos livros
por fim 
miríade de partículas
colhidas nas horas mortas
suspensas das galáxias 
em outras vidas
poeta 
que de tanto intensamente
tudo querer viver 
morre na penumbra
esquecendo-se pelas causas
de todos
da sua própria vida.


Lisboa, 3 de Maio de 2014
Carlos Vieira


                                                             "O poeta recompensado"
                                                                      René Magitte

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Passeio poético



um cão ladra 
na rua sem parar

para o sem abrigo 
que se esconde

para a bicicleta 
e ciclista a pedalar

para o gato sereno 
no primeiro andar

para as crianças 
a brincar na relva

para a lua
no céu a brilhar

a adolescente triste 
insiste
em o mandar calar

puxa-lhe a trela 
cão que ladra 
não vai morder

apenas ladra
ladra lá fora
um poema 

que todo o dia
o esteve a sonhar
a remoer.

Lisboa, 2 de Maio de 2014
Carlos Vieira