segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

As papoilas...

«As papoilas são estrelas que caíram de sono.
Elas têm o segredo.»

Maria Ângela Alvim

Um dia o céu...

Um dia o céu
veio pelo molhe até aos meus pés
e verde era o teu cabelo
como então ali
à noite o mar.

Uma vez era uma vez
a história
construía-se na areia
para sempre
com levíssimos
pés de mármore.


Cruzeiro Seixas



Poesia:


“words set to music” (Dante
via Pound), “uma viagem ao
desconhecido” (Maiakóvski), “cernes
e medulas” (Ezra Pound), “a fala do
infalável” (Goethe), “linguagem
voltada para a sua própria
materialidade” (Jakobson),
“permanente hesitação entre som e
sentido” (Paul Valery), “fundação do
ser mediante a palavra” (Heidegger),
“a religião original da humanidade”
(Novalis), “as melhores palavras na
melhor ordem” (Coleridge), “emoção
relembrada na tranquilidade”
(Wordsworth), “ciência e paixão”
(Alfred de Vigny), “se faz com
palavras, não com ideias” (Mallarmé),
“música que se faz com ideias”
(Ricardo Reis/Fernando Pessoa), “um
fingimento deveras” (Fernando
Pessoa), “criticismo of life” (Mathew
Arnold), “palavra-coisa” (Sartre),
“linguagem em estado de pureza
selvagem” (Octavio Paz), “poetry is to
inspire” (Bob Dylan), “design de
linguagem” (Décio Pignatari), “lo
impossible hecho possible” (Garcia
Lorca), “aquilo que se perde na
tradução (Robert Frost), “a liberdade
da minha linguagem” (Paulo Leminski)…

Paulo Leminski

Silêncio

 Estás tão ausente.
- Também tu estás ausente.
- Diz-me porquê.
- Diz-me também tu porquê.
- Isso entristece-me tanto.
- E como pensas que me sinto.
- O mesmo te pergunto eu.
- És tu que me tornas ausente.
- Mas eu estou aqui.
- Eu também, deixa lá!

(Silêncio).


Per Aage Brandt, Livro da Noite

1:26




And I can’t concentrate on anything except 
how green your face looks, illuminated 
by the light from the dashboard numbers, and how 
lonely the talk radio always sounds at such an hour. 
And I know right now that we’re 
not going to make it—how unpainful a process 
it will be to retrieve my things from your house, 
to give back the ring and some socks you’ve left.

Brett Elizabeth Jenkins

J'aimerais



domingo, 5 de janeiro de 2014

Histórias com os meus botões X



Fixo o olhar no botão de madrepérola,
junto ao decote, sei de uns altivos, forrados de seda,
outros "des(em)pregados, sem condição.

Lisboa, 5 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

Histórias com os meus botões VIX



De metal precioso
com brasão foram-se os botões 
ficaram os corpos seminus.

Lisboa, 5 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

Histórias com os meus botões VIII



Falar com os meus botões 
e da sua passagem breve, nas mãos singelas  
e brancas das costureiras. 

Lisboa, 5 de Janeiro de 2014 
Carlos Vieira

Eusébio

Hoje  quero dizer  "pantera negra", nomeá-lo elegante, tentar um poema indomável, um país  na sua finta a dançar no relvado. Um país  que tanta vez  se ergueu, na alegria, no seu gesto desportivo e sorriso discretos. O povo se curva destroçado perante o génio que agora  passou  a ser imortal. Lisboa, 5 de Janeiro de 2014 Carlos Vieira

Histórias com os meus botões VII



Botões e euros tem excesso de níquel
os Miseráveis andam de novo por aí
Nicholas Nikleby também.

Lisboa, 5 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

Histórias com os meus botões VI



Será poeta maldito ou é um sintoma 
de inacessível solidão
andar todo o dia de braguilha aberta.

Lisboa, 5 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

Histórias com os meus botões V



O meu dia de manga de alpaca
corre sorumbático entre botões de punho
e punhos de renda, nada na manga, nem no colarinho.

Lisboa, 5 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

Histórias com os meus botões IV



Pelos olhos vazados
de um botão de âmbar
sigo um menino da Índia sem infância.

Lisboa, 5 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

Histórias com os meus botões III



Botões enormes de metal 
dourado da casaca do uniforme
em dias de chumbo.

Lisboa, 5 de Janeiro de 2014 

Carlos Vieira

Histórias com os meus botões II



Dedilhei
extasiado esse poema sinfónico
nos botões de pérolas do teu corpete.

Lisboa, 5 de Janeiro de 2014 
Carlos Vieira

Histórias com os meus botões I

Um dia quis-te de súbito nua 
arranquei um a um todos os teus botões
e fiz uma coleçâo.

Lisboa, 5 de Janeiro de 2014 


Carlos Vieira

Ave haiku LXXIII




Fiquei de sobreaviso
o espírito santo de orelha
foi o marulhar da ave entre as folhas.

Lisboa, 5 de Janeiro de 2014


Carlos Vieira

O trem da vida III

O trem da vida III

Dentro de si
a locomotiva 
dos irmâos Lumiére
esse jacto de luz
que iluminou
as salas e os túneis 
escuros
e todas as estações
da sua vida.

Nas suas veias
corre a linha do Tua
e o sangue do crime
do Expresso do Oriente
dentro do seu cérebro
um comboio apitou
três vezes.

Depois do Trem das Onze
desalmadamente 
o vento fustigava-o
mais a si
que ao casal de namorados
na estação da Parede.


Despertou
em pânico
com os estalidos metálicos
da mudança em Irun
para a bitola europeia.


À flor da pele
aquele Breve Encontro
onde decorre
todo o amor proibido
e todos na mesma carruagem
ele de olhar perdido
na paisagem
de tanto desencontro.


Por dentro
do seu corpo
nas entrelinhas
do seus ossos
zunem nos carris
as rodas das carruagens
que chegaram a 
todas as Austerlitz's
da história.



Lisboa, 5 de Janeiro de 2014

O trem da vida II



Ali vai 
no wagon-lit
deitado no beliche
a mulher dos seus sonhos
por baixo
e um qualquer deus
por cima
ou vice-versa.

Lisboa, 5 de Dezembro de 2014
Carlos Vieira

O trem da vida I



Na minha vida
houve sempre 
um comboio 
a passar
um suburbano
um pendular
e eu no cais 
à tua espera
sabendo já
que não vais
chegar,
outro a partir
tu na janela
a dizer adeus
ou afinal
não eras tu
foi mulher
que inventei
para o teu
lugar.

Lisboa, 5 de Janeiro de 2014

Carlos Vieira

sábado, 4 de janeiro de 2014

Hoje enquanto esperava

Hoje enquanto esperava 
que a chuva amainasse
escorria apenas água
na espada do Condestável
na Pastelaria Oliveira
comia o milésimo pastel de amêndoa
reparo agora 
muitos anos depois dali 
ter jogado à lerpa
que as Capelas 
para além de terem ficado Imperfeitas
há muitos séculos que chove 
lá dentro como na rua.


Lisboa, 4 de Janeiro de 2014


Carlos Vieira

O Lena voltou...

O Lena hoje voltou a ser 
ululando
o rio turvo da minha infância
revi o meu avô
junto à margem de galochas
e chapéu de chuva
debaixo de um salgueiro
a pescar enguias
com um gancho do cabelo
depois a transbordar
na memória imperfeita do vale 
o espelho de água
e o Castelo de Porto de Mós
a navegar.

Porto de Mós, 4 de Janeiro de 2014


Carlos Vieira

Acordes subversivos I


          
                                                     Poema dedicado ao meu amigo "Barrrote"

O tempo era das trevas,
a noite daquele lugar 
era habitada por sonâmbulos, 
por bruxas e outras almas penadas,
as estrelas apodreciam e caiam de maduras
e de repente, ouviram-se estridentes
acordes de uma viola amplificada
e a voz de um demónio plangente
"I can't get no satisfaction!",
fez despertar a aldeia
petrificada.

Lisboa, 4 de Janeiro de 2014


Carlos Vieira

Ave haiku LXXXII



a noite de luar na oliveira 
é um palco de prata onde dois melros 
realizam um teatro de marionetas

Lisboa, 4 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

A enfermeira...


A enfermeira
na sua imaculada aparição, disse " - Ponha-se à vontade!"
Tirou-lhe o sangue, a alma e a razão.

Lisboa, 4 de Janeiro de 2014


Carlos Vieira

Ave haiku LXXXI



Aves versus peixes
escamas versos penas
e o poeta de carne e osso para desempatar.

Lisboa 4 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

Não te via chorar...

Não te via chorar há anos
e nem um jardim, como cenário,
tornou o acto menos doloroso de assistir.
Sei que é difícil fazeres o caminho de volta.
Desapareceu, como a casa,
levado pelos ares do desgosto.

Descansa, um dia poderemos falar
sobre quase tudo, menos da vida
que escolhemos ter.


Marta Chaves

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Ave haiku LXXX



Os pássaros estavam tão habituados
que me vinham comer à mão
durante o sono.

Lisboa, 3 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

Poemas são conchas...

Poemas são conchas abandonadas por animais sofredores
que nelas viveram — a beleza que resta
de uns traços da humana errância.

Casimiro de Brito

Ignorância

Estranho nada saber, nunca ter a certeza
Do que é verdadeiro, certo ou real,
Forçado então a dizer pelo menos é o que sinto
Ou Bom, é o que parece:
Alguém deve saber.

Estranho ignorar o modo como as coisas funcionam:
A sua capacidade de encontrar o que necessitam,
O seu sentido de forma, e o espalhar da semente preciso,
E a sua vontade de mudar;
Sim, é estranho,

Trazer vestido até tal conhecimento – pois a nossa carne
Cerca-nos com as suas próprias decisões –
E ainda assim gastar a vida em imprecisões,
Tanto que quando começamos a morrer
Nem fazemos a ideia do porquê.

Philip Larkin
tradução de Pedro Silva Sena

Ninguém Sabe Coisa Alguma

Philip Porque nós não sabemos, pois não? Toda a gente sabe. O que faz as coisas acontecerem da maneira que acontecem? O que está subjacente á anarquia da sequência dos acontecimentos, às incertezas, às contrariedades, à desunião, às irregularidades chocantes que definem os assuntos humanos?Ninguém sabe, professora Roux. «Toda a gente sabe» é a invocação do lugar-comum e o inimigo da banalização da experiência, e o que se torna tão insuportável é a solenidade e a noção da autoridade que as pessoas sentem quando exprimem o lugar-comum. O que nós sabemos é que, de um modo que não tem nada de lugar-comum, ninguém sabe coisa nenhuma. Nãopodemos saber nada. Mesmo as coisas que sabemos, não as sabemos. Intenção? Motivo? Consequência? Significado? É espantosa a quantidade de coisas que não sabemos. E mais espantoso ainda é o que passa por saber. 

Philip Roth, in "A Mancha Humana"

A caixa negra


Não procurem a caixa negra da poesia,

não tem respostas gravadas,
está cheia de perguntas e perguntas dos sonhos
ou de um silêncio onde é penoso entrar.

Pia Tafdrup

Onde vão os passos...

Onde vão os passo que se afastam e que escuto
Longe muito longe
Estamos sós a minha sombra e eu
A noite cai

Pierre Reverdy

Quando nos Apaixonamos



Quando nos apaixonamos, ou estamos prestes a apaixonar-nos, qualquer coisinha que essa pessoa faz – se nos toca na mão ou diz que foi bom ver-nos, sem nós sabermos sequer se é verdade ou se quer dizer alguma coisa — ela levanta-nos pela alma e põe-nos a cabeça a voar, tonta de tão feliz e feliz de tão tonta. E, logo no momento seguinte, larga-nos a mão, vira a cara e espezinha-nos o coração, matando a vida e o mundo e o mundo e a vida que tínhamos imaginado para os dois. Lembro-me, quando comecei a apaixonar-me pela Maria João, da exaltação e do desespero que traziam essas importantíssimas banalidades. Lembro-me porque ainda agora as senti. Não faz sentido dizer que estou apaixonado por ela há quinze anos. Ou ontem. Ainda estou a apaixonar-me. 

Gosto mais de estar com ela a fazer as coisas mais chatas do mundo do que estar sozinho ou com qualquer outra pessoa a fazer as coisas mais divertidas. As coisas continuam a ser chatas mas é estar com ela que é divertido. Não importa onde se está ou o que se está a fazer. O que importa é estar com ela. O amor nunca fica resolvido nem se alcança. Cada pormenor é dramático. De cada um tudo depende. Não é qualquer gesto que pode ser romântico ou trágico. Todos os gestos são. Sempre. É esse o medo. É essa a novidade. É assim o amor. Nunca podemos contar com ele. É por isso que nos apaixonamos por quem nos apaixonamos. Porque é uma grande, bendita distração vivermos assim. Com tanta sorte. 



Miguel Esteves Cardoso, in 'Jornal Público (14 Fev 2012)'

Não há vergonha em esquecer à noite...


(...) Não há vergonha em esquecer à noite aquilo que lembrarmos de manhã. A noite é o momento do esquecimento, da confusão, do desejo tão quente que se torna vapor! A manhã, porém, apanha-o como uma grande nuvem acima do leito. Seria estúpido não prever à noite a chuva da manhã. Se, por hipótese, me dissesses que não tens nenhum desejo a exprimir, por cansaço ou por esquecimento, ou por excesso de desejo, que leva ao esquecimento, por hipótese de retorno, dir-te-ia que não te cansasses mais, tomasses o de qualquer outro. O desejo furta-se, mas não se inventa (...) e um desejo toma-se mais facilmente que um hábito.



Bernard-Marie Koltès: Na solidão dos campos de algodão

DENTRO DOS LIMITES




Habituas-te à tua forma. Às paredes construídas de paciência, à altura do tecto cheio de manchas estranhas, ao chão pegajoso; imperturbável, a tua respiração sonda o espaço e retorna, as tuas mãos acham no escuro o interruptor, os cigarros, como te movimentares, habituas-te a fumar no escuro, quem vês mais nitidamente são os teus filhos, pedalam em bicicletas de pneus furados, pegam em ferramentas sem terem ninguém que lhes ensine, atiram aos pássaros errados, raspam as faces com a tua navalha embotada. Habituas-te. Debaixo dos cobertores a tua mulher revolve-se nua, sente-la próxima, estendida, em dimensão real, tentas tocar-lhe, habituas-te a um corpo que ninguém mais toca e tu mais e mais perdido à volta dela, difícil de consolar. Habituas-te à vista como a uma história, a quem ta leu naquela altura, quase adormecido, já naquela altura, muitos anos atrás, praticamente não compreendeste o significado, tal como te esqueceste de muitas coisas e habituas-te à imagem que fabricas depois: salteadores aparecem e cantam, há um homem com uma gadanha, uma mulher numa torre, de braços abertos como se estivesse à espera de cair, no entanto a espera dela é voluntária, ri-se. Habituas-te. A que em breve, corajosamente alguém virá socorrê-la, derrotar os ladrões e dar cabo do homem com a gadanha. Habituas-te ao impulso de a meter para dentro. A ficar hesitante ao princípio, em seguida, aos teus hábitos, a uma relação com a luz sobre os lençóis, à porta de ferro, à torneira que pinga, aos buracos dos cigarros nas cortinas, aos teus posters nus que se oferecem, ao rosto omnipresente que se debruça quando escurece, ao bafo da justiça, às conversas dos outros e à música ao longe, ao facto de tudo provocar estalidos, ao desaparecer vagaroso de um passo no corredor, a ter medo habituas-te, à tua nudez completa, sémen na mão, caracol que és. A matutar habituas-te, à inutilidade da respiração contínua habituas-te, ao constante cismar habituas-te.

ESTER NAOMI PERQUIN

XXI


Todos os dias, a toda a hora, uma após outra, cruzo-me na rua com mulheres que não conheço e nunca conhecerei. Algumas são lindas, outras atraentes, outras aparentam inteligência ou outra característica mental cativante, outras ainda parecem acumular tudo isso. Se, a cada vez que tal sucede, parasse e as parasse, lhes dissesse o que penso e que indícios me fazem pensá-lo (supondo que estivessem dispostas a ouvir-me), levaria uma eternidade a percorrer um quilómetro. Concluo: a vida, esta vida, apressada e inútil, feita de correrias rumo ao vazio, foi esquiçada ao arrepio da beleza e da sua contemplação. A vida é para os brutos. Para os cegos que, como diz o provérbio, não querem ver. A vida é uma moléstia ininterrupta. Ou, se calhar, viver é outra coisa que não isto, é darmo-nos o tempo de parar na rua para dizer às mulheres por que razão são lindas.


Miguel Martins, 1 Homem Sozinho

CORRECÇÃO



Não te ocupes das vírgulas, todos esses signos
de pontuação, hífens e aspas
que marcas com tanta minúcia,
perder-se-ão, por obra do descuido
do corrector e o teu ritmo
da frase, do pensamento, da linguagem
resultará menos importante do que
esperavas ou talvez do que querias.
Tudo isso eram sonhos dourados:
não te lerão ao som da música da fala
antes ao som do estrépito do mundo.

Piotr Sommer


Cai a noite sobre as montanhas da Geórgia;


Cai a noite sobre as montanhas da Geórgia;
À minha frente ruge o Aragva.
Estou em paz e triste; há um lampejo em meus suspiros,
Meus suspiros são todos teus,
Teus, e de mais ninguém... Minha melancolia
Está insensível a angústias e apreensões,
E meu coração arde e ama mais uma vez,
Pois nada pode fazer além de amar.

Todo instante que passávamos juntos
Era uma celebração, uma Epifania,
No mundo inteiro, nós os dois sozinhos.
Eras mais audaciosa, mais leve que a asa de um pássaro,
Estonteante como uma vertigem, corrias escada abaixo
Dois degraus por vez, e me conduzias
Por entre lilases úmidos, até teu domínio
No outro lado, para além do espelho.

Enquanto isso o destino seguia nossos passos
Como um louco de navalha na mão.

Arseni Tarkóvski (1907 - 1989)


Disseste que se via nos olhos


Que nem um sorriso conseguia esconder. Que me vias, assim. Perdoa-me também; porque eu reparei nos teus olhos. E não esqueço gestos. Por exemplo: quando levaste a mão ao peito como se não conseguisses respirar. Ouvias esta música. Já não te recordas, eu sei. Disfarçaste. Ainda hoje me espanto com o que aguento lembrar. Por exemplo: quando chorei abraçada a ti. Foi assim que nunca mais abandonei o teu cheiro. Mas tu voltaste a dizer que se via nos olhos e eu – o tanto que tentei – só queria enganar-te. Cedi. Não sei bem o que viste. Sei que te arrastei no meu silêncio. Que me acalmou a tua respiração acelerada. Ou a tua mão no meu cabelo. Beijaste-me em prenúncio de tragédia. Não interessa agora. O que aconteceu? A memória será o meu calvário. E isso – tu sempre soubeste – vê-se nos olhos. Tomara eu sabê-lo tão bem: talvez ainda tivesse tempo de fugir.


Rafael Alberti


A cal...

A cal,
o amor
guardado para os mortos,
dissolvente perfeito
da tua solidão
descarnada
em meu peito,
a cal,
o coração.

Carlos de Oliveira



Não sei para que lado da noite me hei-de virar

Não sei para que lado da noite me hei-de virar
onde esconder de ti o rio de fogo das lágrimas
quase a transbordar e acendo mais um cigarro
e falo atabalhoadamente de um futuro qualquer
e suspiro de alívio porque não ouves o que digo
ou se calhar também não sabes onde te esconderes
esperamos que se ilumine o lado certo da noite


Carlos Alberto Machado

O gato à janela...

                                                 
                                                        Poema de Bénédicte Houart

Solidão


A solidão é como uma chuva. 
Ergue-se do mar ao encontro das noites; 
de planícies distantes e remotas 
sobe ao céu, que sempre a guarda. 
E do céu tomba sobre a cidade. 

Cai como chuva nas horas ambíguas, 
quando todas as vielas se voltam para a manhã 
e quando os corpos, que nada encontraram, 
desiludidos e tristes se separam; 
e quando aqueles que se odeiam 
têm de dormir juntos na mesma cama: 

então, a solidão vai com os rios... 

Rainer Maria Rilke, in "O Livro das Imagens" 
Tradução de Maria João Costa Pereira

Filmes de culto








                                                        O Casamento de Maria Braun

Books to the ceiling...


Em memória de um amor desconhecido




Sei que era uma tarde
de Inverno
e faltamos às aulas
e a areia estava molhada.
Ela roubou um livro da livraria,
ainda me lembro
como se fosse hoje,
era o Heliogábalo ou o Anarquista Coroado,
eu nem sequer fui cúmplice.
Ela fumou um “charro”,
eu não fumei.
Ela chegou o seu corpo nu
ao meu
 e eu fiquei capaz de todos os crimes.
A última coisa
que me recordo
numa memória enevoada,
era do livro de Artaud
a fazer de almofada
e os seus olhos estrelados
e a sua cabeleira em chamas,
ainda hoje
o seu nome ficou por ali
preso às rochas
ou na amabilidade da espuma.

Lisboa, 3 de Janeiro de 2014

Carlos Vieira

Os amantes sem dinheiro

Vem beber café comigo

prometo não largar a tua mão

quando fugirmos sem pagar a conta



Bruno Sousa Villar

Acesa solidão



ela ao chegar a casa não acendia à luz
para que o seu vizinho
de inflamada paixão
não a incomodasse
naquele dia
acendeu uma vela
e ao vislumbrar a auréola
do seu rosto iluminado
inadvertidamente
queimei os dedos num cigarro.

Lisboa, 3 de Janeiro de 2013

Carlos Vieira