domingo, 13 de outubro de 2013

Noite de breu à procura

                                                                                          Não vás p'la noite mansa, assim, tão complacente,
                                                                                             A velhice deveria arder com raiva até ao fim do dia;
                                                                             Raiva, raiva contra a luz que vai morrendo.
                                                                                                                                                             Dylan Thomas




Decifro
um sussurro
nos braços
da constelação
fulgente
e agora corro
talvez
atrás do timbre
da tua voz.

Observo
o relâmpago
num ápice
que ilumina
inolvidável
a tua nudez
e na demência
que se segue
de súbito
vejo
tudo a nu.

Ausculto
o teu coração
magnético
bússola
de tanto norte
e de nenhum
de tanta viagem
por fazer.

Prossegue
o relógio
biológico
e é fraca
a carne
que vai enganando
a morte
para esta mentira
de estar
quase vivo.

Chega um rio
e uma palavra
à noite
o teu olhar
que partiu
aqui estou
a viver
no outro lado
do mundo.

Esqueci-me
da senha
já não posso
entrar contigo
madrugada
a dentro
tão lúcido
e tão distante
por ti
vou continuar
por aqui
em busca da palavra
irrepetível
na noite branca.

Lisboa, 13 de Outubro de 2013
Carlos Vieira


                                                    "Noite branca 2" de Laurent Marre





sábado, 12 de outubro de 2013

Mare Nostrum a céu aberto



Sulcos
de sangue
no rio
no mar
são
rastos
raios de luz

um vulto quase humano
o eritreu
caminha sobre as águas

o murmúrio de tumulto
após a voz rouca
de pregar aos peixes
vésperas 
de sal a sol
e de naufrágio

na noite insaciável
o logro de lâmina
embainhada
afiada palavra
libertando
perfume de âmbar
sem refúgio

saber
o segredo secular
das pérolas
ao regressar
fugir
à rotina do sol
das missangas

ressuscitar
voltando a preencher
o lugar do corpo
que se quis reinventar
na tempestade

saber do insólito gesto
que era uma desajeitada
preposição de flor
uma janela
noutra terra

estudar o logaritmo
da viagem
do beijo
na melodia da espera
da despedida
da coragem

entre o crepúsculo
e as tréguas das gaivotas
partilham-se
centelhas
de um  tempo de esperança
um fragmento
de terra à vista

querer voltar
a esculpir o sabor
do seio túmido
da terra prometida

de amadurecer
um sonho ao relento
mediterrânico

na longínqua longitude
das pedras
em fila indiana
a caminho da alma
etíope
ingenuidade ou espanto
sempre a miragem
sempre descalços
por todos os desertos

é incrível o ruminar 
das águas
no seu leito subterrâneo
e em simultâneo
com a transumância dos astros
incansáveis 
na sua imprestável
vigília dos justos
testemunhando
o intrépido percurso
do coração nas trevas

enquanto isso
fixam-se os vestígios
da crueldade da guerra
nos olhos sem fim
das mães e das crianças 
que deambulam 
entre os escombros
do desencanto
e o reconhecimento
do fundo do mar

amoras ainda brilham
entre espinhos
tornando o silêncio
mais suportável
dele se ergue o canto
e o grilhão dos escravos
volta a ouvir-se a medo
adquire
a tonalidade da pele
o absurdo 
limite do antigo território
das tâmaras

a sua mão descansa
na amurada
na solicitude
na anca
do reencontro
com a vida

talvez pareça desafiar
a feroz presença 
da razão
que impede
a inesquecível
reprodução
de todas as madrugadas

a grandeza
do homem
de desbravar outro
caminho
no rio os raios de luz
no mar juncado
de cadáveres
sulcos de sangue
insurrecto
para eles da vida
apenas sobrou
a coragem de ousar
a vergonha
da europa.


Lisboa, 12 de Outubro de 2013
Carlos Vieira



quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Nua, pura e dura

Nua, pura e dura

Nua
 sem tecidos
sem palavras
apenas
a discrição
do olhar
desagua
um desalinho
de rumos
de cabelos
e de algas
um gesto justo
por todos
os poros
o mais puro
sentimento
um castelo
de areia.

Nua
no dorso dourado
do areal
talvez durma
se esconda
na espuma
talvez
entre as ondas
e os gritos
das gaivotas
se esconda
e se livre
ou desafie
a morte.

Nua
tão quieta
tão crua
em silêncio
sangra
no horizonte
nuvem caída
em zona
de rebentação
tão altiva
e tão em perigo
de vida.

Nua
corpo
fogo aceso
árvore de luz
pássaro atento
da manhã
último limite
das forças
delta
de saber
e sal-gema
esplendor
da carne
na margem da pele
tatuada
de alegria.

Lisboa, 9 de Outubro de 2013
Carlos Vieira
 
Pintura de Juan Miró

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Sem recreio e sem medo

A madrugada
de “berlindes” nos bolsos
em Outubro
de pedaços de arrabalde
e telhados
de vidro embaciado
na cabeça
a espiral do pião
que irrompia no  nevoeiro
e do tinteiro
em tinta permanente
e não tinha medo
de ninguém.

O mata-borrão
a estancar
furtiva lágrima
suave  
sobre o pastel
de cores de aldeias
a espreitar
os ninhos
tecidos a tinta da china
que um homem
não chora.

Na memória  da horta
permanece
o focinho álacre
branco sujo
de um porco-espinho
que tinha medo
da sua própria
sombra.

Oiço os aparos
e a incerteza
dos lápis de carvão
a arranhar
a grandiosa solidão
da raíz quadrada
a convocar
o conhecimento.

Enquanto
tirava dos bolsos
as mãos
escondeu-se
o porco espinho
levantou-se
o nevoeiro
e a sépia do bosque
da infância
e dos selos do correio
foi num abrir e fechar
de olhos.

O giz
a iluminar a ardósia
a escrita carregada
de um país
a 6 de Outubro
um poema
a preto e branco
sem dinheiro
na altura
fazia as contas em pé
não tinha medo de ninguém
nos bolsos
tinha um abafador.

Lisboa, 6 de Outubro de 2013
Carlos Vieira



sábado, 5 de outubro de 2013

Poema para um maestro cego

As heras
erguem-se
na sua impaciência
de sopros e de metais
de esconder os muros
de enlear
o tijolo vermelho
de insectos
a trautear clorofila
de vigiar
a demência
dos cabelos no ar.

À janela pendurado
o sorriso
do maestro cego
é um bulício de luz
que resiste
dentro da casa
a reinventar
o adeus
a decompor em ternura
doença
grades e solidão.

Suas mãos esquálidas
tem a pressa
da seiva e da música
que  vai acompanhar
o bailado discreto
das violetas
pairando
sobre os répteis
e os segredo
das sebes.

Fica ali especado
na penumbra
do fim de festa
natureza quase morta
quase incólume
à passagem
do tempo
que lhe resta
assiste
a este desconcerto
do mundo
aos ruídos familiares
de arrumar a orquestra.

Lisboa, 5 de Outubro de 2013
Carlos Vieira
 

“O Amor Cego” autor desconhecido

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Pura amostragem e por amostragem

“Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.” António Gedeão


Pura amostragem e por amostragem

I
Lágrima
espanto secular
inventado
de pura paciência
candeia
de pedra interior
sonho acorrentado
de luz solar
rumor de gruta.

II
Lágrima
pedaço de quartzo
no olhar da águia
que devora
o desfiladeiro do medo
asas de água
a pique
no abismo negro
da raiva.

III
Lágrima
sal que se soltou
no acre sabor
de morte
que dilui
a tinta seca
e luminosa
subtil enigma
verniz
que quebra
o esquecimento.

IV
Lágrima
feldspato de solidão
força motriz
que corre
em silêncio
contra à parede
no beco do nevoeiro
coragem
no rumo dos corais
de transpor
os muros
do tempo

V
Lágrima
janela de orvalho
onde corre
a timidez
da tua mão
e se insinua
uma moldura
de gelo
e de ausência.

VI
Lágrima
de fome destilada
em puro desespero
da bondade
visivelmente
desconfiada
farta de ideias
de poesia
de humanidade.

VII
Lágrima
que dança
no rosto
que descansa
na cadeira de baloiço
no movimento
do passeio
tão surreal
na disposição
dos móveis
no fim do Verão
o vento
tem para onde ir
o que é cortante
é a ordem de despejo

VIII
Lágrima
tranquila
num coração desfeito
sempre foram
quase trinta anos
a acomodarem-se
a escutarem
a solidão
 num outro peito.

A amostragem continua, por agora, esgotámos os solutos, solventes e reagentes.

Lisboa, 3 de Outubro de 2013
Carlos Vieira





Imagem Yo-Modo “I way”