sexta-feira, 12 de abril de 2013

Escadas

I
Escadas
são as asas do homem para chegar ao céu
ao centro da terra
do sonho
a lado nenhum
às nuvens de um pesadelo
que cresce
dentro de nós
degraus da sede
num poço de amor
e de noite
para onde se desce.

II
Hoje não subi pelo elevador
ataúde da nossa morte vertical
preciso de fazer mais exercício
ataquei as escadas de serviço
pirâmide ou sepulcro de betão
sinto aqui a claustrofobia da vida
que sobrevive  à minha asma
avessa ao esforço anaeróbico
muito mais morto do que vivo
ao chegar a casa ressuscitei
no aroma doce da caldeirada
recuperado da vida afogueada
pronto para o próximo desafio
escolherei a escada de incêndio.

Lisboa, 11 de Abril de 2013
Carlos Vieira

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Um dia de cão

Um dia de cão

Ali está novamente do lado de dentro do aquário, abanando as barbatanas, respirando o mundo lá de fora pelas guelras que é como quem diz sobrevivendo.
No largo, no meio da relva, caía a noite e uma chuva miudinha. Observava os cães, de todas as raças que mijavam alçando a perna e aproveitavam para marcar território. Observava os seus donos que estão ali por causa deles e (ou) por causa dos outros donos de cães com quem tem agora uma cumplicidade, quase canina.
Trocam informação preciosa sobre cães, dedos de conversa sobre muitas outras coisas, pequenas confidências ou arremedos de pequenas e grandes seduções. Dão trela aos cães e aos donos dos cães. Tiram a trela e põem a trela enquanto a chuva cai irritante.
Todos sem exceção tem uma especial atenção para com alguns atos dos cães que se colocavam em situações menos adequadas, se exaltavam, iniciavam pequenas escaramuças, se afastavam das zonas de conforto, então verificava-se que o dono ou a dona tomavam atitudes pedagogicamente assertivas, pois é muito importante que o animal perceba quem é que manda.
Observava aquela simpática manifestação de animais e pessoas, alguns deles e delas, suas conhecidas. Olhavam-se no fundo da sua alma, da sua solidão e sorriam, enquanto os cães corriam uns atrás dos outros e saltavam, cheiravam-se reciprocamente, ladravam e abanavam o rabo, ele no seu voyeurismo decrépito era o único que estava ali a mais, desejando perversamente que todos trocassem de papéis.

Lisboa, 10 de Abril de 2013
Carlos Vieira

terça-feira, 9 de abril de 2013

As paredes tem ouvidos


 

 

Bebo de um trago as palavras

do escritor que respira

no andar de cima

na sua frescura

na afiada e crua lisura

lembram-me

a Fonte das Lágrimas

e o sabor de infância

das amoras

ainda bem que possuo

os telhados de vidro

 

Lisboa, 9 de Abril de 2010

Carlos Vieira

Janela indiscreta


 

 

Espreita no escuro

no prédio em frente

um secreto amor

entrecortado

nas frinchas da persiana

deambula descalço

dá um pontapé

no rodapé e vê estrelas

pragueja e apaga-se

o secreto amor

por uma unha negra.

 

Lisboa, 9 de Abril de 2013

Carlos Vieira

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Morte súbita ou vida precária


 

 

De repente

Tu eras o poente

Resistindo depois de todas as rosas que murcharam

 

Meus olhos

Pousaram no teu silêncio

Com sofreguidão aprendem a voar até à eternidade

 

Nas suas palavras

Podiam-se ainda ouvir os grilhões, a falta de ar nas câmaras de gás

Sobrevivendo com dificuldade ao tiro que ditou a morte de Martins Luther King

 

Bates no meu peito

Teus braços cruzados

Minhas mãos contorcem-se no vazio e desfolham a penumbra

 

Tu eras um peixe

Rumor fulgente no rio

Agora sou ave nocturna, tu és lago parado à minha volta

 

Partiste ligeiro

Sem olhar para trás, sem fechar a porta

Voltámos a ser apenas vultos cercados de nuvens  

 

Saíste sem dizer nada

Não esperava contudo ficar menos só

Já não te espero, tu espias-me, reencontro-te em qualquer esquina

 

Partiu e deixou-nos no seu peito firme

Óculos redondos e para “ou-ver” ao longe Imagine

Essa última rosa exangue

 

Subitamente

As tuas longas mãos frias

Deixaram acesas apenas as estrelas mais distantes

 

A luz limpa do teu canto

A perfeita serenidade das estátuas

E tu caindo redonda do alto da cerejeira

 

Como pudeste morrer agora

Sem aviso prévio

Desconheces que começou a Primavera

 

Lisboa, 7 de Abril de 2013

Carlos Vieira

 

 

“Woman with her dead child”

Kathe Kollwitz

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Poema escrito contra o vento



Tendo na mão esta força do vento não tenho quase nada
não tendo quase nada tudo quanto tenho é de vento
tenho contudo esta árvore que esbraceja na janela
quando nua o vento a possui varrendo o pensamento
existindo o vento em mim existo na rua dos braços dela
escutando a árvore mesmo se murmura com o vento
se fala contra mim de beijos me cala e assim se revela
um arrepio neste final de Março transido me deixa
e ali agachado de cócoras enquanto voa o tempo
naquela mão fechada num poema de  amor se escoa
fica a fragância da árvore que só do vento se queixa.

Lisboa, 5 de Março de 2013
Carlos Vieira
 

                                                 Imagem de quirkybird.livejourtnal.com
               

Tomas Hobbes - Nasceu em 5 de Abril de 1588