domingo, 10 de fevereiro de 2013

Hoje fui a um funeral...


Hoje fui a um funeral

onde reencontrei como é natural

aquelas pessoas que ainda não morreram

aquelas pessoas que por circunstâncias da vida

estavam para mim um pouco mortas

esquecidas ou apenas de vez em quando lembradas

como outras pessoas entretanto ou há muito já mortas

o que cada vez mais acontece

é que cada vez vou a mais funerais e a velórios

onde nos vamos pondo cada vez mais à vontade com a morte

sem a enfrentarmos verdadeiramente

e de tanto a vencermos durante a vida nunca lhe damos

grande valor

mesmo quando a nossa vida já é pouco mais

que uma morte adiada

ou uma morte vivida

hoje fui ao funeral da minha prima Conceição

que na sua humilde medida soube ajudar-me durante anos

a que a minha existência à altura curta

naquele tempo de cinzas

fosse também de entrega

à ternura do seu gesto e da palavra

de muito mais vidas vividas

e pequenas mortes vencidas.

 

Lisboa, 10 de Fevereiro de 2013

Carlos Vieira

 

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Ossos Ilíacos


 

Desconheço a razão, porque hoje acordei com estes ossos atravessados no pensamento, como se fossem ilhas que emergem, reminiscências de paisagens mediterrânicas.

Os Ilíacos não são muito conhecidos, excepto certamente nos pesados manuais da anatomia, no surrealismo desinfectado das urgências dos hospitais, nas salas de diagnóstico e de rastreio dos traumatizados dos acidentes de viação e de outros episódios, que na vida moderna nos deixam literalmente esmagados, onde nem os ossos mais desconhecidos ficam ilesos.

Fui pois, em busca dos Ilíacos. Verifiquei que os mesmos são possuidores de asas como tantos pássaros, só que estes pairam ali na zona da bacia e voam por ali, naquela tão sensível zona do corpo humano, tendo por missão a protecção da zona pélvica e sendo um dos mais relevantes suportes, da nossa erecta existência.

Até aqui nada de extraordinário, que uns desconhecidos ossos tenham mais relevância que aquela que outros ostentam ou reivindicam, é algo que os nossos pobres esqueletos, ao longo da sua vida, vão acompanhando com a indiferença ou a resignação daquilo que se designa serem “ossos do ofício”.

Nesta exploração matutina pelas mais duras partes baixas da humana compleição óssea, fiquei contudo a saber que os tais ossos, Ílio, Ísquio e a Púbis eram acompanhados pelo Cóccix e Sacro, o que diga-se de passagem são companhia de respeito.

Ossos que já me deixaram sem palavras e quase me fizeram perder a respiração, pois quando atingidos, deixam-nos particularmente disponíveis, para negociar aquilo que até aí achávamos absoluto, indiscutível e passando a reconhecer como muito razoável, aquilo que até aí, era para nós do domínio das mitologias.

Sentado sobre o assunto, fui escalpelizando os Ilíacos e trazendo-os para a luz do dia, como se num laboratório os visse por outro ângulo, fazendo incidir sobre aqueles uma outra luz.

Abracei pois estas partes mais recônditas e menos conhecidas da nossa estrutura, bebi todo o conhecimento que dali podia dispor, visando ultrapassar tão injusto esquecimento.

Senti necessidade de me espreguiçar e foi então que senti de novo aquela dor aguda, me apunhalou “as minhas cruzes”, deixando-me de joelhos, abominando os meandros enciclopédicos, que me haviam despertado outra vez esta recente e ilíaca fragilidade.

 

Lisboa, 9 de Fevereiro de 2013

Carlos Vieira

 

 

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Do amor efémero e da coragem



ser bravo
neste tempo manso
ter a coragem de ser breve

ser trevo breve
e a sorte de rever-te
na última vez do campo imenso

ser bravo
mesmo se não vence
ser a trova no teu corpo sulco intenso

seres demais em tudo aquilo que faço
mesmo quando
em ti não penso

ser o criador do espaço
e empunhar a lâmina
de uma distância que em ti não venço

ser quem sabe
o que criou para ti o laço
e na tua mão um esquecido lenço

ter de ser tão bravo e breve
nesse imenso
abraço da tua sede

ser também o vento
que te leve
e que invento para te trazer de volta

não ser nada sem ti
ponta solta ou quase nada
é tudo o que me resta

ser o perfume
da tua ausência e da tua festa
na madrugada

ser o lume
e a paixão fugaz
e inocência reencontrada

ser o diabo que te carregue
e a mim
que me não deixe atrás.

Lisboa, 5 de Fevereiro de 2013
Carlos Vieira

 
 

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Voo de treino para um dia cinzento


 

 

hélices

pétalas de metal

desfazendo o silêncio

de algodão

 

no céu

prossegue o diálogo

a duas vozes

do bimotor

um “vol de nuit”

 

deus permanece

calado

à escuta

no “cockpit”

 

o coração

em looping

oiço a música

o vórtice

entre as nuvens

do seu corpo

 

 

Lisboa, 2 de Fevereiro de 2013

Carlos Vieira

 

 

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Itinerário com laranjas, peixes e sol






                                                    

Hoje ia trabalhar
de entre a folhagem
sedutora
uma  última laranja
resistia
a espreitar.




                                               Textured red fish J. Vincent scarpace

Mais á frente
sabia de um peixe
da mesma cor
que faria piruetas
no lago verde
sem que alguém
 pudesse suspeitar.



                                                            

                                                         "Sun" de dandelion (in Tumblr)

O sol
ora se escondia
entre faias e ciprestes
ora se desfazia
em pássaros
tudo muito inocente .

Eu ia trabalhar
e não acredito
em coincidência
estou sem disposição
sem tempo
para este cerco
de sombras
onde começa o dia
de jogos de luz
e de cores.

Hoje decidi
que só é útil
à poesia
esta disposição
este tempo
de laranjas, de peixes
e de sol
se colhidos
por aqueles
que neste dia
não vão trabalhar.

Lisboa, 1 de Fevereiro de 2013
Carlos Vieira