domingo, 5 de fevereiro de 2012

Poema para um caracol


 
espiral de sol
que nos aquece por dentro
e desce até ao sinuoso silêncio
a esse mais tímido exercício da vida
de onde irradia
um rasto de mel
proclamas uma fantasia de saliva
e celebras um reino
sobre um caminho de musgo
e o suave persuadir das pétalas
tu que tens a sabedoria vegetal
e o fogo translúcido das amoras
conheces a subtileza dos pirilampos
no meio das trevas
desde o princípio dos tempos
e estás inebriado
de um perfume de feno e de madrugadas
o teu pensamento é feito de um fulgor
de laranjas
e do restolhar dos pássaros
nos arbustos
ardes no absoluto das fragâncias
foges ao ardil da palavra
vais pelo Verão
pelo leito dos rios
e escutas ainda o alarido das correntes
à margem das confidências
e depois de cultivares
a paciência dos répteis
que devastam as colheitas
e todo o conhecimento
foi na aparente ingratidão dos peixes
e no rigor das estações
que aprendeste a construir
a solidão de todos os muros
e o avesso de todas as portas
e vais tu pelo indelével
itinerário
na tua reincidência de flores
fazes deflagrar
em qualquer lugar
a laboriosa e exacta dimensão
do teu mundo interior
de caracol
quase esmagado
meu vizinho e meu irmão
mesmo que o déspota prevaleça
ou o vendaval sopre
e arrase a tua casa frágil
se ela ficar de súbito vazia
que os seus escombros
e fragmentos de memórias
sejam os versos deste poema
e tudo aquilo que perdemos
signifique o absurdo
de um dilema
uma réstia de esperança
mesmo que efémero
o salvo conduto
da liberdade

Lisboa, 4 de Fevereiro de 2012
Carlos Vieira

Pintura de Shigolev Oleg




quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Nós e amarrações


I

flor de cordel
de onde se desprende
a voz
felina
feroz
por dentro da pele
e da raiz dos pulsos
cicatriz
de novo aberta
de novo alerta
neste papel
de nós

II

palavra
que penso
que presa
na garganta
fica só
e pensam
que posta a pão e água
ficarás à solta
que darás a volta
e deixarás de ser
palavra
e de ser

III

a nó
se desfaz
o longe
e o perto
e a sua paz
dão-te mais corda
dando-te o deserto
dão um ponto
sem nó
apertam agora
de mão firme
muito seguros
de si mesmo
não o irão largar
vão escovar-lhe
o ego
e de olhos bem abertos
ficará à sua espera
o nó cego


IV

é um silêncio
que se desata no teu rosto
que se desenrola
no teu gesto sereno
é o laço
feito dessa fibra apaixonada
de um abraço
que tece estrelas
na noite do teu regaço
e desce outra vez pela corda
à tua gruta perfumada
à minha sede
e desprendida
voltas a voar
sem rede
sem balanço
sem nós
num baloiço
cabisbaixo
neste jardim
que deixou de ser
de nós

Lisboa, 2 de Fevereiro de 2012

Carlos Vieira
    
                                              
                                                             Pintura de Isabel Lhano

A mão escorrega na fímbria do teu vestido

A mão escorrega na fímbria do teu vestido
 o sol pousado nos cornos de um touro
foste água fresca na ânfora
eu fui o vento que te despe na tarde   
escondes-te num puro lençol
subterrâneo
aí ao fundo do túnel
há um caminho de tâmaras
e de Mediterrâneo
ouve-se uma canção
de porcelana
onde podes voar o frágil silêncio
trazes a máscara da idade do bronze e do sal
correm ali as desvairadas lágrimas
lâminas espetadas
no avesso trágico das memórias
pelos teus olhos perpassa o gume das sombras
de leopardo
e nos desgrenhados momentos de luz
dos suspiros
nos teus lábios pressinto
despertar uma sede de papiros
nas entranhas o apelo do caos
neste início da fome
e das trevas
da época moderna
arde olímpico
o  desafio do teu rosto
que consome
meu único vestígio de chama eterna

Lisboa, 12 de Outubro de 2011

Carlos Vieira

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