sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Liberdade II


na tua pele
que ao tocar estremece
ecoa ainda um medo ancestral
Lisboa, 25 de Abril de 2016
Carlos Vieira

Posso escrever os versos mais tristes esta noite...

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu amei-a e por vezes ela também me amou.
Pablo Neruda

Observo...

observo
a bela estampa
do prado
com um cavalo
que no charco
se admirou
se enlameia
se sacia de si
Lisboa, 12 de Março de 2016
Carlos Vieira

Poema para um lar de todas as idades


Percorro
com o olhar
a floresta
a prata dos penteados
de cabeças coroadas
e lá está sozinha
reinando tão magra
na sua solidão
que não quis
interrompida
tão frágil
de uma tristeza
erecta e digna
mantêem-se à tona
olhando ainda
pela sua vida
e sua circunstância
e pela dos outros
da cadeira de rodas
injusto fim e trono
para tão amável
reinado
e no intervalo
da sua demência
do seu abandono
oiço-lhe o eco
das palavras
e da clarividência
“- Nunca gostei disto,
leva-me para casa!"
Lisboa, 23 de Abril de 2016
Carlos Vieira

Language is never innocent


Enquanto a cidade dorme


Algures
se estimulasse
a minha hipersensibilidade
podia até distinguir as vibrações
deste prédio onde resido
nos seus doze andares
cada resfolegar
as aflições
e o frigir dos cozinhados
uma babel de sabores
e de razões muito razoáveis
contando com os seus 48 lares
e não sei bem quantos
corações devolutos
vivo por vezes amarrado
entre o presente e o passado
dos aromas
entre cada patamar
podia alimentar-me deles
da sua intensidade
aliás como muita gente
que desconheço
mas adivinho
que terá como primeiro
e único prato
o que os olhos comem
mas há estes dias assim
em que tudo me dói
e todos me doem
os que vivem por debaixo
e por cima de mim
sempre assim foi
as dores são mais
daqueles que me estão perto
por um lado a indiferença
de vizinhos
por outro a sua viscosa
intromissão
minha cidade à flor da pele
antissocial
neste domingo de manhã
luminosa
furada a berbequim
respeitando escrupulosamente
a postura municipal.
Lisboa, 24 de Abril de 2016
Carlos Vieira

Mulher no banho


Aqui estás
tão esplêndida
e nua
debaixo
do chuveiro
tão tranquila
e tímida
que te esvais
pelo ralo
que existe
em ti.
O sabonete
é o poema
que te percorre
a superfície
da carne
e te escorrega
das mãos
e te leva
para perto
do fim
envolta
no silêncio
perfumado
que te acompanha.
Restam apenas
a memória
das palavras
afogadas
as borbulhas
são os únicos
sinais visíveis
e transitórios
que te ocorrem
e que vêem
ao de cima.
Bebes
sequiosa
a água fresca
precisas
urgentemente
de tomar banho
por dentro
de ultrapassar
o mofo
da pureza.
Vais
temperando
a culpa
vais sendo
engolida
pelo esquecimento
e pelo vapor
da água
agora tépida
perdes-te algures
na transparência
na espuma
dos dias.
Lisboa, 23 de Abril de 2016
Carlos Vieira


"Spirit of The Bath"
Painting by REQ