sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Esquisso para um auto-retrato


Aqui estou no cume
por cima das nuvens
o mundo todo
e os deuses
à minha volta
nos corações de pedra
batem furiosamente
os uivos do vento
e grasnidos de milhafre
alcandorado
aqui não sobrevive
nem o efémero líquen
ou as memórias
libertas de raízes
nem o perfume da urze
ou cintilações de quartzo
esta é uma porção
de terra nua
que por agora me pertence
que me dilacera árida e dura
a carne macia
vivo estribado nesse espigão
do amor pela vida
e nesta corda que a pendura
sobre o precipício
vivendo no limite
vivemos suspensos
sobre o inferno e o paraíso
aqui estou eu
no pico da montanha
com serventia
de vistas para Espanha
e passaporte
de cidadão do mundo
onde vivo
possuo um plano
imaginário da ponte
para um céu
aqui com pés no chão
nasce um rio
onde corre o sonho
de viajar iluminando
o medo
e as trevas
e o desconhecido
reinvento o abecedário
da solidão
e sou por um momento
pleno proprietário
da terra
antes que ela
me possua a mim.
Lisboa, 17 de Abril de 2016
Carlos Vieira


Pintura de Caspar David Friedrich

Auras


Gosto agora da aura
que dos objetos emana
gosto também da aura
das pessoas
que transformam
os objetos
e gosto da tua aura
de anjo sobrevoando
a Terra e a cidade
que me fizeste reconhecer
em mim
e nos homens
o poder de deuses
e demónios
de extraordinária
barbárie
ou de uma rara
humanidade.
Lisboa, 10 de Abril de 2016
Carlos Vieira

Pequenos poemas de misericórdia ao homem boçal


Nestes novos tempos em todos nós habita esse homem que menospreza
na sua ancestral mediocridade:
I
a destreza da árvore
e das raízes a clarividência
e a demência
da ave
inutilmente
a golpear de asa
a fúria dos ventos
II
a inolvidável cintilação
e subtileza
das flores
arregimentando cores
que correm nas artérias
corpo a corpo
com o silêncio
III
a timída arquitectura
da luz
das palavras
e o murmúrio aceso
da sua seiva
na imensa
sofreguidão dos espaços
manietando
a ternura do gesto
IV
ignora
a cicatriz do granizo
na clorofila
da folha
que a palma da mão
áspera e rural
acaricia
no bulício
da manhã inquieta
V
desconhece
o trinado
da bicicleta do carteiro
no ocaso
das aldeias
despertando
outras tantas
campainhas
VI
que sabe ele
do ranger
dos gonzos
enferrujados
das portadas
da noite
e das mãos
retorcidas
de artroses
orações
e distâncias
dos que lhes são
próximos
Lisboa, 10 de Abril de 2016
Carlos Vieira

Poema para um avistamento


I
Rio-se
sozinho
o louco
desta ponte
a passar
por cima
do destino.
II
Observam-lhe
uma última vez
o seu corpo nu
a boiar no leito
do rio
por debaixo
do tabuleiro
rio-se
finalmente
nu
é agora
negligente
perante
a inutilidade
do dinheiro
do mundo.
III
Haverá
melhor morte
que o tumulto
da corrente
ou um túmulo
de água doce
sem esquecer
as borbulhas de ar
essa magnífica
metáfora
das últimas
palavras
o seu peso
líquido
o seu final
fluvial.
IV
Claro
há um pormenor
que é raro
contar-se
nos afogamentos
água fria
falta de ar
e a dor insuportável
da ferida
causada
pelas arestas
das lágrimas
nos que ficam
eternamente
por sarar.
III
Ali estás
por cima
da ponte suspensa
da vida
a avaliar
a sua profundidade
ausente
observando
a tua chegada
de guindaste
a bailar
à superfície
a debater-se
contra a corrente.
Lisboa, 9 de Abril de 2016
Carlos Vieira

Histórias de uma mulher ferida de melancolia


Deu início
à tarde
iluminando-a
ali
desfraldou
o seu sorriso
largo
último
da sua curta
vida.
Lembro-me
de por ali
ter ficado
ancorado
na visão de ti
eras o tranquilo
estuário
na desculpa
do café.
Nesse tempo
a tua mão
era a brisa
a dedilhar
a versão
matinal
de uma neblina
de verão.
A tua tez
clara
na leveza
das linhas
do rosto
não resistia
a um olhar
mais atento
e o rubor
indelevel
que o tingia
não coincidia
com o fogo
interior.
Podia-se
descortinar
a imperceptível
ondulação
de uma tristeza
a confissão
de um percalço
num passado
não muito
distante.
Prometia tudo
o que tinha
e o que não tinha
no seu olhar
podia adivinhar
a sua alegria
a subtileza
de um mistério
por revelar
o entreabrir
das pálpebras
de tristeza
ao cair
da tarde.
Percebia-se
a entrega
e a gratidão
nos olhos
semicerrados
e no arco
do espanto
o manto
do crepúsculo
cobria
a nudez
do seu dorso.
As palavras
eram frutos
agridoces
que se desfaziam
em silêncio
na boca
ávida do beijo
que lhe foi
negado.
Caminhava
distante
pelo perigosos
territórios
dos aromas
dos salgueiros
despiu-se
para se banhar
por debaixo
do chilrear
dos rouxinóis
e emergiu
um torso
em ouro de sol
no espelho
de água
fresca.
Os peixes
a escorregar
nos caracóis
dos cabelos
murmurando-lhe
o segredo
das nuvens
que espiaram
a vida toda
das naus
e de viagens
imaginárias.
No seu seio
amadureceu
o tempo
dos amantes
que ali foram
beber
seu doce
veneno
depois
foi o abandono
à melancolia
e a insensatez
da culpa
e da razão.
Lisboa, 9 de Abril de 2016
Carlos Vieira


Mulher azul de Picasso

Asas do desejo


Magnífico
e terrível
é o acto de sopesar
por um lado
a sensualidade
da matéria
devendo
para tal
permitir-se
um mínimo
abandono
a que falta a alma
e por outro
habitar
essa amendoeira
do espírito
a que falta o objecto
o fruto
o perfume
e sabê-la essencial
para sobreviver
ao caos
e no entanto
apenas os pássaros
que se libertam de si
esses objetos voláteis
tem a mais exata
percepção
da volúpia do voo
e do ramo
onde devem pousar
e do tempo
e do relevo
do timbre
do seu canto
para poder
evitar o vórtice
ou o silex
que nos cegam
nas asas do desejo.
Lisboa, 5 de Abril de 2016
Carlos Vieira

Cirurgia a fractura da tíbio com epidural


Naquele desvio
o anestesista
criou um canal
de irrigação
inventou
um rio
a transbordar
de imaginação
a noite
corria-me
na veia difícil
e confundia-se
com o dia
de uma simples
operação
sóis benévolos
reguláveis
pendiam
do tecto
havia marcianos
verdes
de máscara
e sangue
impávido
na pendência
dos recipientes
naturezas mortas
de inox
reflectiam
as cenas
dos próximos
capítulos
e um sono
epidural
a espraiar-se
em delta
na larga foz
dentro de mim
sempre
muito mais
sentimental
que cirúrgico.
Lisboa, 4 de Abril de 2016
Carlos Vieira