domingo, 27 de março de 2016

Colagem quase imperceptível de um retrato


Tornou-se
irrespirável a visão
do teu corpo tóxico 
o seu contacto
meu corpo é estranho
na sua ausência
curiosamente
consigo sintonizar
na pele do teu ventre
um acorde de amêndoas
eu de novo fora de mim
vivo de equívoco em equívoco
como se a tua omoplata
fosse uma asa delta
e a tua anca firme estivesse
a mais de dois dedos do sublime
se oiço a seiva que te percorre
deixo de saber quem sou
posso confundir-te
com murmúrios de bétula
nos bosques do Norte
e na superfície gelada dos lagos
vivo sonhos embaciados
onde procuro a indescritível
suavidade cúmplice dos teus lábios
e a nossa respiração ofegante
é um silêncio ainda aceitável
para esta vida.
Lisboa, 26 de Março de 2016
Carlos Vieira


De Pé...

De pé
testemunho
rajadas de vento
a pentear a urze
a desfolhar o granito
nas escarpas
hirto a desafiar
abismos da natureza
e de mim.
Gerês, Novembro de 2015
Carlos Vieira


Um imbecil...

um imbecil
apoderou-se da consola do farol
e um leque de luz varreu o litoral
e um lobo uivou no areal
e a sereia naufragou na neblina
deixo os meus pensamentos
eu vou ao seu encontro
e dou-lhe o rumo e a música
da poesia
Lisboa, 26 de Março de 2016
Carlos Vieira

Ode à restauração das vidas frágeis


Observo
os detalhes
da louça chinesa
o vermelho velho
dos arbustos
e a melancolia
dos pássaros
vislumbro
o lodo verde
dos deltas
habitados
de peixes
curiosos
e o ténue
reflexo
de um tigre
à espreita
na selva
há também
um junco
à deriva
ficou intacto
sobre o azul
desmaiado
cintila
agora ancorado
na confluência
das linhas
da minha mão
que recolhe
do chão da sala
cada fragmento
em arestas vivas
tento recuperar
a cor e o risco
que diz a dor
e a fome
do artífice
e dar
nas coordenadas
da minha breve
alegria
a mesma inteireza
àquelas vidas
de frágil
porcelana.
Lisboa, 26 de Março de 2016
Carlos Vieira

Noite


Chegou a noite
e seu delírio
de estrelas
e sua alcateia
de sombras
deus ex machina
que nos envolve
no suor frio
de tantos medos
e em regaços
de torpor
nesse manto
de sono
e de cansaços
depois
ali ficamos
à mercê
a desafiar
monstros
de filmes
e de BD
a acordar
os sonhos
nos braços
de fadas
e das princesas
anorécticas
e oxigenadas
enquanto
se erguem
da terra
fantasmas
ávidos
de sangue
e de luz.
Lisboa, 25 de Março de 2016
Carlos Vieira

Flor eterna (Dente de leão)


Lembro-me
dessa flor
sem nome
nas puras
manhãs
da infância
a tão precária
e perfeita
construção
lembro-me dela
depois do sopro
antes do caos
da efémera visão
da penugem
do seu corpo
em voo
a entrar na nuvem
mínima
flor de desalento
da esperança
breve
de quase nada
da sua queda suave
em silencioso
espanto.
Lisboa, 22 de Março de 2016
Carlos Vieira


Que sentido para as palavras


Explodem bombas pela europa
pelo mundo e nos poemas
há palavras embargadas 
são agora fragmentos
tábuas de salvação
réstias de ternura
que sobrevivem
e dão ou não
sentido
à dor.
Lisboa, 22 de Março de 2016
Carlos Vieira