segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Poema ao amigo virtual


Este poema
é para ti
meu amigo virtual
ao virar
da esquina cibernética
ao tocar da tecla
onde algures
aguardas que surja
no firmamento do écran
de 13,3 polegadas
uma estrela
de píxeis refeita
por vezes
tua única companhia
e noutras de tanta descoberta
nessa solidão recreativa
avanças pela rede
sem rede
vais flutuando
no espaço sideral
por cima da espuma dos dias
na mancha láctea
um post é formigueiro de letras
dele fazes um grito lancinante
e do grito germina uma canção
esperas pela resposta
de quem não sabes
que não chega
e percebes
que existe
muito mais gente
com a tua pergunta
e apenas alguns
encontram a resposta
na cacofonia dos navegadores
gostas de estar online
viciaste-te
no teu desaparecimento
do mundo
apagas-te
reinicias-te em cada dia
a cada momento
no retângulo da tua atenção
atravessas continentes
rumo à etérea melodia
da tua inexistência
devoras migalhas
de ternura
nas breves palavras
tocas a ferida do silêncio
na pele do ecran táctil
deixaste de ser tímido
ou talvez não
falas agora
por detrás de um muro
que agora cerca
a tua vida digital
estabeleces pontes
e desconheces
o murmúrio da água
para onde corre esse rio
de sentimentos
sem foz
apenas sonhas
efémeros downloads
de um amor impossível
tu um peixe fora de água
de software incompatível
aprendes a nadar
no vórtice da corrente social
usando a tábua de salvação
de um reconhecido
anonimato
meu amigo virtual
eis-nos aqui de novo
face a face
de permeio
apenas o biombo
doméstico
nos desencontros da vida
e as nuas silhuetas
das memórias
a processarem outputs
de solidão real.
Lisboa, 24 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira

O déspota

O déspota
que do sol
fez a espada
ficou cego
pela usura
da luz
ignora
estar preso
às trevas
nas masmorras
onde nasce
o sonho
mais audaz
e se ergue
delicada
a flor
da madrugada
inexpugnável.
Lisboa, 22 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira

Poema de um poeta e de um cavalo



um cavalo
dá um coice
em vão

um poeta
dá um coice
em verso

um coice
dá um verso
em falso

o cavalo
esse poeta
perverso

na noite
das estrelas
de um coice

na noite
a cavalo
de um verso

poeta
de montar
a noite

a monte
o poeta
e um cavalo

foi-se
de um coice
até à lua

luas
dos cavalos
e dos poetas

por fim assinam
de coice
ou de cruz

Lisboa, 20 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira








Pintura de Maqbool Fida Hussain

Pintura rupestre


Na caverna
um animal acossado
o rumor de um silêncio húmido
que o sílex de um olhar cauterizou
a palavra é um archote naquela boca
na margem deste rio subterrâneo
vencendo o torso do vazio
fruto maduro e afável
veado de sofreguidão
vencido.
Lisboa, 20 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira

Coleção



Reuni
para memória futura
meia dúzia de palavras

a palavra
jangada à deriva
no imenso e azul oceano

um pássaro exausto
sem sentido
no céu infinito

uma pegada breve
arrastada
nas dunas do deserto

o uivo selvagem
coração ferido
em trevas da floresta

a silhueta acossada
e a lâmina desembainhada
na esquina da noite

a chave
que liberta os corpos
da clausura do silêncio

aquele estâmpido
que algures
põe termo à solidão

uma língua de fogo
a devorar o mármore as igrejas
ávido de chuva

um insecto
que sobrevoa
a dança das searas

a ânfora submarina
que a suave memória dos lábios
ainda habita

o sino de bronze
zurzindo em vida
o eco da morte nas aldeias

a concha
caída numa praia sem regresso
e sem sossego

o botão
arrancado na urgência e na raiva
de um amor desesperado

a flor arrancada
e caída das mãos
do desencontro definitivo

a lâmpada
campânula de luz bruxuleante
que te cerca de insónia a ti e ao livro

o rosto cabisbaixo
em dias de arame farpado
e de angústia

por fim
um pião e um cordel
esquecidos no tempo do asfalto

a minha coleção
a aguardar a descoberta
de um jogo e de um sonho

espero agora
que a força centrífuga
da ilusão volte a girar.

Lisboa, 20 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira



"Le dejeuner sur l'herbe, 77", de Ana Vieira

domingo, 27 de dezembro de 2015

Poema para ti neste fim de Outono


Este fim de Outono
traz-me a filigrana
tecida pelos teus dedos
a renda das cortinas
de reflexos etéreos
onde o teu rosto
se emboscava
na vigília da solidão
no desencontro das esperas
um córrego de luz descia
do sopé do teu olhar
apagando as linhas
onde a beleza da matemática
foi possível
tu a multiplicar por mim
ainda que a respiração ofegante
do prazer
confluísse na inevitável
solução
da lágrimas e do suor
neste fim de Outono
ao despedir-me
do abismo das tuas ancas
fico cego
pela revoada dos teus cabelos
nos meus ombros
desencantam-me
a memórias de pássaros
que partiram
e dos beijos
que me recusaste
e que perdi
quando estavas
de costas
frente a frente
com o insondável
das tuas ausências
ou será que o amor
também hiberna.
Lisboa, 12 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira

A cama onde me deito


Enquanto me dava à indústrias dos pensamentos
e à vacuidade dos despachos
desprendiam-se das amoreiras à janela do gabinete
as folhas vermelhas e amarelas
quanto de subtileza na morte e harmonia no bailado
a evitar a prata dos troncos
se transformam por fim na melancolia do tapete precário
até que uma brisa se levante
e o cão rafeiro se deite na cama acabada de fazer
eu continuo às voltas
no virar de página e desperdício da tinta e dos papéis
no labirinto da burocracia
cada um faz a cama onde se deita
não sendo esse contudo o caso dos cães.
Lisboa, 12 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira