terça-feira, 17 de novembro de 2015

olho por ti...

olho por ti
e cego
olho para ti
sem sossego
Lisboa, 12 de novembro de 2015
Carlos Vieira

Sentir-te só


Sopra
o vento na estepe
a neve tudo pode esconder
excepto
os teus cabelos despenteados
o teu rosto afogueado
Iluminado
pela luz bruxuleante
do candeeiro
na tenda apertada
do sem fim
do amor
até a terna memória
do beijo à esquimó
ameniza
um pouco esta Sibéria
esta desesperada
miséria
de te sentir só
Lisboa, 12 de Novembro de 2015
Carlos Vieira

Subtilezas


Uma borboleta
serpenteando
pousou
na janela de guilhotina
o bater frenético
das suas asas
afastou a sua imagem
acalmou-lhe
a pulsação.
Lisboa, 12 de Novembro de 2015
Carlos Vieira

Jogar “à sardinha”


Na ausência
das palavras
pediu-lhe 
para jogarem
“à sardinha”
e naquele ardor
demonstrou
como era ágil
o seu amor.
Lisboa, 12 de Novembro de 2015
Carlos Vieira

Memórias do verde pinho


I
entrava no pinhal
e ouvia o eco
do seu grito
ancestral
a sair pela porta
das traseiras
da infância
II
sonhava
no talho doce
das tábuas de pinho
do tecto
a contar nódulos
de medos
e das noites
infinitas
III
assalta-o
o aroma
dos afetos
e essa solidão
de resina
que escorre
por uma fenda
à sua altura
de menino
IV
lembrava-se
de ser premiado
com um fio de pinhão
e uma taça de barro
depois do corta mato
e do arranhão
da urze
V
fazia os barcos
de carrasca
que ficavam a flutuar
na memória
nos primeiros jogos
às escondidas
dos rostos e dos corpos
da ilusão
por detrás da verdade
e da mentira
dos troncos
austeros
VI
sabia
da experiência
do carvalho
no meio do pinhal
a refulgir
lustre de cristais
e da sofreguidão
das sombras
VII
lembrava-se
das varetas de sol
por debaixo
das nuvens de passagem
onde pousava
a rola no pinheiro
e do alvoroço
entre os insectos
ávidos de clorofila
VIII
esqueceu
da caruma
a fazer o Outono
na cama dos animais
dos atalhos vermelhos
por entre o musgo
de um silêncio verde
dos circunspectos
adultos
nos castanhos
erectos
IX
nesse tempo
o ar era límpido
e nas clareira
os corpos
nus amavam-se
desesperadamente
e até a falta de pudor
dos voyeurs
era inocente
X
já se ouvia
à época
um moto-serra
distante
a floresta estremecia
suspirava
e uma raposa
era um relâmpago
fugaz
um arrebatamento
XI
ainda se lembra
do tojo que o picava
reaprendia
a contenção do gesto
a cicatriz
estrela clarividente
da pele
após a inolvidável
e abrupta
presença do sangue
XII
apanhava pinhas
e sabia dos últimos
esforços do vento
e calculava
a altura da queda
e a exata percepção
das cores
na útil fragilidade
de uma natureza morta
XIII
subia a um pinheiro
e daquele mastro vivo
abarcava
todo o oceano
no azul
a esteira de um olhar
embriagado
de aventuras
à sua espera
depois do mar verde.

Lisboa, 11 de Novembro de 2015
Carlos Vieira



Foto de autor desconhecido

mártir ocasional


flecha
flor de metal
a germinar no dorso
ave de um único voo horizontal
desferida pelo arco tenso de um poema
ritual de anjo caído que em esforço
paciente se esvai em borbotões
pelo chão dispersas pétalas
de sangue inocente
Lisboa, 9 de Novembro de 2015
Carlos Vieira

Feira do Relógio


I
Amanhã
vou à Feira do Relógio
matar o tempo
com uma pistola
transformada.
II
Se chover
melhor
gosto do gotejar
das tendas
do salpicar
da lama
do triunfo
da aparência
na roupa
falsificada.
III
Infelizmente
já não há castanhas
embrulhadas
nas páginas amarelas
a receptação
deixou de ser
a oportunidade que era
estamos em migração
para o mercado
virtual.
IV
Do ângulo
de visão de Deus
tudo na mesma
almas penadas
que se escondem
debaixo da errância
dos chapéus de chuva
e o preto já foi
mais habitual.
V
Enquanto
não se calam
na discreta
narrativa
dos novos tempos
oiço os pregões
e as pragas
aves em via de extinção
que sobrevoam
o silêncio.
Lisboa, 7 de Novembro de 2015
Carlos Vieir