quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Decadência e glória de uma estátua de um deus num jardim particular


Desta janela
aquela estátua
nua e de olhos lácteos
em louvor
a um deus grego
desconhecido
exposta às intempéries
são eloquentes
o verdete que a impregnou
e as brancas feridas da pedra
de alguma terrena queda
alguma negritude
desenhada
aqui ali interrompida
nas escultóricas fímbrias das vestes
e que as chuvas
não lavaram
uma única estátua
de deus grego num jardim
um hino á precariedade
à imperfeição da construção humana
uma representação monoteísta
enfim uma irrelevante
peça decorativa
que nos resgata
do céu da solidão
e que daqui se avista.
Lisboa, 24 de Setembro de 2015
Carlos Vieira


afinal o ponteiro de sombra ...

afinal o ponteiro de sombra
no relógio de sol
era o teu olhar dardejante
Lisboa, 24 de Setembro de 2015
Carlos Vieira

Poema do inacessível ao tangível


Pudesse eu ter
os teus mais breves pensamentos
os mais etéreos
que as minhas mãos
incansáveis
nunca deixariam de sobrevoar
em vigília
o teu leito
e para ti iriam inventar
novos frutos
diferentes madrugadas
e a densidade do meu sangue
seria a tinta que daria ao teu corpo
novas sinfonias
feitas com a inevitabilidade dos silêncios
em que me aguardou o teu olhar
em que te demoras
a escutar-me
nessa tua ternura eterna
de palavra sopesada.
Lisboa, 23 de Setembro de 2015
Carlos Vieira


Pintura de Glen Craig

O burocrata...

o burocrata
na sua imensa sagacidade
e escravatura perante o detalhe
falsificou a tua verdadeira identidade
e não compreendeu 
que o teu perfume na tarde
era mais que uma página virada
no seu gesto inexpressivo
de manga de alpaca
Lisboa, 22 de Setembro de 2015
Carlos Vieira


Pintura de Salvador Dali

sábado, 19 de setembro de 2015

Um bicho que conta


sobre a superfície
espelhada em mosaico da cozinha
frágil, um bicho de conta sobre si próprio
tolhido de um medo absurdo
para nós, reféns do prosaico
e de fantasias de opala
Lisboa, 19 de Setembro de 2015
Carlos Vieira


Aves e frutos e coicidências


Não sei o que faz o melro
no castanheiro
no meio de Setembro
mas adivinho-lhe
o timbre cristalino
do seu canto
amplificado na filigrana
das folhas
que caiem no fim da tarde
e que existe
alguma explicação
para que as castanhas
se tornem mais suculentas
e doces
no próximo Inverno.
Lisboa, 18 de Setembro de 2015
Carlos Vieira

Duas rolas bravas...

Duas rolas bravas
duas pequenas nuvens
de céu enlameado
pousaram num pinheiro manso.
Lisboa, 18 de Setembro de 2015
Carlos Vieira