segunda-feira, 27 de julho de 2015

Enquanto esperava...

enquanto esperava
o bico de lacre 
no bebedouro
morreu só
de sede 
preso 
na gaiola agitada
das suas sombras

Lisboa, 27 de Julho de 2015

Carlos Vieira

domingo, 26 de julho de 2015

Escrita à flor da pele


Sabe do vagar
dos teus lábios
esquece o vento 
a sibilar
na penumbra
da sua pele
esse instrumento
de navegar o desejo
em esplendor
sabe da devassa
do relento
no súbito arrepio
interior
que a percorre
interprete equidistante
do mais subtil frémito
no amplexo da sua entrega
na cicatriz da dor
à superfície
quase morre
permanece
incólume
nesse momento
nada transpira
e tudo se cala
tacteando-a
sabe-a de cor
Lisboa, 26 de julho de 2015
Carlos Vieira


sábado, 18 de julho de 2015

Na orla de um referendo



Deito-me à sombra 
de mim mesmo
e do chapéu de praia
incrédulo
depois de um mergulho
de alma lavada
esqueço as penas
e as divídas
de ouvido no chão
oiço o bramir
das pequenas ondas
a ressoar 
na filigrana das pedras
da beira-mar
agito sem orgulho
o branco e alguma gordura 
do meu corpo
perante o escultural bronze
da maioria do veraneante
profissional
a refulgir na areia
escuto o pulsar
do coração da terra
uma ou outra gaivota
as andorinhas do mar
e as crianças
cabeças no ar
vão fazendo a pontuação
a brincar
soltando grasnidos
de Verão 
rasgando frestas 
no céu azul
interrompendo
na praia
pequenos dramas
anónimos
no murmúrio da multidão
que se entrega
e paira
que descansa
e desmaia
enterram a cabeça na areia
numa indiferença olímpica
ao sim ou ao não
da tragédia grega.

Albufeira, 5 de Julho de 2015
Carlos Vieira

"Construindo unidade, suportando identidade"

Rafael Argullo

Renascimento


Não nasci ontem
sendo certo
que sempre me sinto
voltado ao contrário
na placenta da noite
no cerco da insónia
e todos os dias
a madrugada me corta
o cordão umbilical
dos sonhos
a lição da história
e me entrega
inapelavelmente
à fria manhã da realidade
todos os dias
renascendo
nos erguemos
sobre os meus
e os teus escombros
todos os dias
hei-de coar
da suavidade
dos tecidos
a luz emergente
do seu rosto
que por milagre
se anuncia
rasgando o véu
da memória
que te encerrava
nessa noite
longínqua.

Lisboa, 17 de Julho de 2015
Carlos Vieira



The Face of Humanity

sexta-feira, 3 de julho de 2015

Eroticamente II


Amar-te
dedilhando
os últimos confins
da tua pele
onde o beijo discreto
da brisa da tarde
acendeu o desejo
desmesurado
de qualquer morte
resgatar-te.
Lisboa, 30 de Junho de 2015
Carlos Vieira


Andrew Wyeth Painting

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Eroticamente I


Sobe o bambu
devagar
o caracol
enquanto tu
crepuscular
desces
sobre
o jardim interior
por pequena fresta
sinusoidal
penetra fálico
agora
um raio de sol
em estertor final
tu minha bandeira
que se agita
nas entranhas
esplendor
de bambu
com reflexos
do percurso
de prata do caracol.


Lisboa, 25 de Junho de 2015
Carlos Vieira

sábado, 20 de junho de 2015

Análise superficial do hábito externo


Saber dos segredos
inconfessáveis da tez
aquela cor
de quem dá início ao Verão
dos pequenos eixos
rumos mais ou menos incisivos
cercados seixos de angústia
altos e baixos relevos
de um rosto de meia idade
observar com minúcia
o tricotado mínimo da pele
onde se urdiu o desejo
e ainda há pouco
se pressentia o coração
e onde agora
desvendados aromas
se libertam
se confundem
jardim profícuo
onde se tornou difícil
o acesso dos pássaros
e do olhar
da posição das mãos
pode-se adivinhar
o silício do medo
um silêncio pesado
que ainda ecoa
uma memórias dos passos
que antecederam

na prece
e na alegria
interrompida
e que desagua em delta
e resplandece
em vermelha contradição
pela estranha
cumplicidade dos poros
no território
de um corpo abandonado
sobre as ervas
numa nudez ebúrnea
em que uma única ferida
no seio esquerdo
borbotando
se pode confundir
a um botão de rosa
que se animou
e o ermo triângulo
do seu sexo fechado
a um desespero sem nexo
em decúbito dorsal
último reduto
daquela violenta solidão
que avança
vertiginosamente
para todos os interstícios
do agora cadáver
que ninguém
reconhece
página voltada
abandonada
à eternidade
evidência
de beleza breve
da morte
que se confunde
com o sono.
Lisboa, 20 de Junho de 2015
Carlos Vieira


Desenho de Harry Clarke