sexta-feira, 6 de março de 2015

Ícaro me confesso


Falta-me o golpe de asa
e sobra-me
o que uns apelidam
de decência
outros a consciência dos limites
não tenho ataques de pânico
por enquanto
apenas ataques de asma
e essa claustrofobia dos novos tempos
das contas, das rotinas e das missões
e de alguma poesia.
Aproveito por vezes as correntes
das altas para as baixas pressões dos sonhos
e a vertigem dos gestos
a frontalidade das almas desbocadas
mas logo a temperatura do sol
a inacreditável solidão nos olhos das crianças
e a lâmina do frio e da fome
nos temperam a trajetória
e nos apressam a queda
Ícaros devolvidos à Terra
sem sonhos
e sem asas.

Lisboa, 6 de Março de 2015
Carlos Vieira

A Queda de Ícaro de H. Matisse

domingo, 1 de março de 2015

Contraponto crepuscular

Um menino 
corre a tarde toda,
interruptamente
a bola
corre de um lado 
para o outro.

O poeta 
vive atordoado
na preocupação
do rumo
antecipado
da bola,
se for 
para a estrada
pode
vir um carro...

O poeta 
deixou 
de ter assunto
e descansa,
depois da voz 
e da mãe tranquila
terem voado 
da janela,
chamando o rapaz,
a seguir correu
a persiana
e o poeta ficou
em paz.

Tudo aponta
para a mãe
o crepúsculo
aceso,
a contida
exuberância
dos insetos
que habitam
o princípio da noite,
um poeta 
nunca vive
com muitas certezas.

O poeta 
terá ficado cego,
nestas circunstâncias,
tal só acontece
se se aconchegou
perigosamente
à imperceptível
e sublime
resistência das cores
e dos materiais
deles ficando 
embriagado.

O poeta
estuda agora 
com minúcia
o saber incorporado
que dá alma aos objetos
e abandonou-se
à clausura
criada pelo vai e vêm
da sombra do pêndulo
suspenso 
sobre a solidão.

Esta noite viverá
da memória
de uma bola de futebol
da alegre chilreado
de um menino
que corre na relva 
do largo
e da voz fresca 
serena
daquela mãe 
emboscada
atrás da persiana
de alguma forma
também cega
e presa 
noutra solidão.

Lisboa, 1 de Março de 2015
Carlos Vieira

Pequenas loucuras e absurdos


I

Senta-se na esplanada
e pede um café 
insistentemente
abandona-o 
na mesa já frio 
e vai-se embora 
sem pagar
afogueada.

II

Chegou à paragem
e perguntou 
pelo autocarro n.° 16
um passageiro
disse-lhe que hoje domingo 
não passava
a senhora de meia idade
respondeu 
que só o iria apanhar 
na segunda-feira
depois de amadurecer
ideias 
e de planear
o destino e o fim
da viagem.

III

Foi comprar flores
pediu três rosas
do vermelho
dos seus lábios
e que dessem mais cor
ao rosa pálido
das suas mãos suaves
em rosa pálido.

Lisboa, 1 de Março de 2015


Carlos Vieira

Hora da visita



No serviço de neurologia
do Hospital de Santa Maria
cada palavra tem a beleza
de uma flor fora de estação
a frase em esforço conseguida
nos lábios pacientes
é sinfonia ou poema de luz
a iluminar os rostos familiares.

Lisboa, 1 de Março de 2015

Carlos Vieira

sábado, 28 de fevereiro de 2015

Movimento de translação



Apenas
uma única palavra
em equinócio
por vezes rasa
outras vertical
devorada
por língua de fogo
boreal
enquanto se reacende
o murmúrio
do inédito desejo
em labareda
numa sede urgente
que desperta
subterrânea
num lençol
de água
o sonho
onde mergulha
a raiz de precária
que será uma papoila
dormideira
de coragem inútil
desfraldada
no início
do degelo da memória
para onde corre
a vertigem do sangue
dos inocentes
derramado
na imensa
superfície de neve
aí irrompem
tristes líquenes
no seu adejar
tímido
desajeitado
e saem a medo
as ideias
relutantes
e elementares
da quase eterna
hibernação
num frenesim
e tépida proximidade
de animais
solares.

Lisboa, 28 de Fevereiro de 2015
Carlos Vieira



Melodia Interrompida



Há horas
em que cresce
un frio
por dentro de nós
um íntimo arrepio
e nos sentimos nus
e sós
à mercê
mínimos
menores
te sentes um pouco
mais do que quase nada
traído
por um fio
não te podes
esconder
sem abrigo
incrédulo
perante
a ruína
do que acreditaste
e sem forças
Mais velho
para carregar
de novo
o fardo
repentinamente
tão pesado
desesperado
de amar
o amor
tão ausente
tão entrecortado
e sorris
perante
a normalidade
dos beijos mornos
tão habituado
e condescendente
e o cansaço
de esperar
e a espera
de exasperar
por outra estação
pelo fim
de mais um Inverno
que interrompa
os gestos timídos ou contidos
e as meias palavras
destes dias
e das noites
que nunca acabam.

Lisboa, 25 de Fevereiro de 2015
Carlos Vieira




Escultura Daniel Arsham

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Apesar do AVC ou por causa dele



I

Olho por ti
e lembro-me 
de ter visto contigo
Tudo O Vento Levou
no velho cinema das Furnas
com banda sonora
a ecoar
no telhado de zinco.

II

Não te esqueço
no Mercado do Rego
no deve e haver
da madrugada
contabilizando
a explosão de aromas
e sabores
acompanhados
de um galão escuro
e meia torrada
em pão caseiro.

III

Recordas-te
de levar as hortaliças
e a fruta
aos veterenários e tratadores
residentes humanos
do Jardim Zoológico
e no regresso 
ofereceste-me
um gelado Rajá
e saíu-me
um Franjinhas
de plástico
e andámos de gaivota.

IV

Não julgues
que me esqueci
das noites quentes 
de Verão
no Picadeiro da Nazaré
a resistir
ao mármore frio
do Estado Novo
não dormias
e não era por causa
do café
a tua preocupação
foram sempre
os outros.

V

Sei da tua solidão
pela vida fora
da grande desilusão 
de um primeiro 
e único amor
como podes lembrar-te
se foi há meio século atrás
ficaste refém
daquilo
em que acreditaste
da tua entrega
e nunca concebeste
atravessar 
de novo a dor
de te dares
e de te perderes
outra vez.

VI

Não me tentes
enganar
agora não vais desistir
antes de chegar
à meta
lembras-te de irmos 
ver a última etapa
da Volta a Portugal
na subida
da Calçada do Carriche
tão frágil
volta a fazer 
das fraquezas forças
os teus frágeis ossos 
da osteoporose
com suas bolsas de ar
podem permitir-te 
voar.

VII

Sei 
da tua entrega
a todos 
e a cada um de nós
da enorme presença
de espírito
quando ficaste sozinha
a tomar conta
da terna Penélope 
deficiente mental
tua irmã
que toda a vida
foi tecendo e cozendo
a sua inacessível
solidão
não sei com que número
de agulha
a linha era Âncora
se bem me recordo.

Escusas
de me olhar
como quem não percebe
já nos conhecemos
não julgues
que te deixamos
desistir.

Lisboa, 21 de Fevereiro de 2015

Carlos Vieira