O gato persa estendia a pata e jogava o novelo na varanda da vivenda, onde o sol se demorara, vislumbrei na porta de madeira o número 48 dourado.
Após chamar e não tendo resposta, entrei, segui o fio da meada, aposento a aposento, que adivinhei quase abandonados, página a página, desloquei-me como um felino até a origem da lã turquesa, percebendo que no final o gato continuava a brincar, enquanto na outra ponta, alguém ou algo a segurava, num dilema entre a firmeza e a imobilidade.
Fui-me debatendo entre um leve cheiro a mofo, longínquas iguarias e uma luz coada, onde se reflectia, uma miríade de poeiras suspensas.
Por fim, a um canto da sala, junto a uma janela em contraluz, um vulto que logo constatei esgrimia agulhas de tricot, embora um pouco encadeado, percebi que o fio turquesa, iria até junto do coração da silhueta.
Fixei os olhos no chão e fiz o exercício de me habituar à penumbra, à solidão secular dos objectos e dos móveis antigos, fui-me aproximando com o cuidado de não quebrar a frágil harmonia do momento, nem causar algum receio e até pânico, àquele que seria o meu próximo interlocutor.
A personagem estava sentada num maple, em oblíquo em relação à minha posição, parecia estar à minha espera, enquanto continuava a tecer a sua cruzada, pareceu-me ouvir-lhe uma breve interjeição, um desvio subtil da sua cabeça coroada de prata na minha direção, não me vendo, não poderia ver-me.
Afinal foi um homem que puxou o fio, seria mais uma sua artéria, com o qual articulava a sua precária serenidade, encarou-me mais fixamente, eu era para ele o que sempre seria, apenas um desconhecido, o persa entretanto aproximou-se, na sequência de um sinal para mim imperceptível, este transmitia-lhe a exacta noção do perigo.
Decidiu então falar e as palavras tinham todas o peso exacto, uma voz luminosa que parecia vir dos infinitos corredores do silêncio e das sombras.
Disse num tom onde se insinuava alguma angústia e desespero:
“ - Então é o senhor que vai levar os livros. Para mim, vai ser grande a perda, pois muito embora estarem na minha cabeça, vai ser pior no entanto, será a sua ausência, deixar de ouvir a sua voz, sentir o seu aroma, desfolhá-los, já que não os pude ler, sentia porém que o seu fim, não deveria este destino comum, de também eles, ficarem cegos entre estas paredes, nestas prateleiras!”
Lisboa, 20 de Setembro de 2014
Carlos Vieira
Foto de autor desconhecido de um
gato que não é persa