terça-feira, 23 de setembro de 2014

A garça e o carneiro caraculo



Registo
a partir desta janela
de manga de alpaca
na narrativa da várzea:
a garça altiva
que viaja no dorso
de um carneiro caraculo,
a metáfora subversiva
da pose de poeta
a recitar
a duas vozes
 poesia efémera
e leve
sem açúcar.

Lisboa, 24 de Setembro de 2014
Carlos Vieira



Norman Share Photography

domingo, 21 de setembro de 2014

Seu corpo teu fogo sem artifício


Foguetes
a estrelejar
e a iluminar
a nudez ávida
do teu corpo
no ardor
da urgência
ao longo
da húmida erva
cúmplice
que esconde
aquele amor
proibido
numa aldeia 
do interior

no espanto
do rosto dela
afogueado
nesta noite
de um amor
que os consome 
em lume brando
só do encontro
no seu olhar
toda terra treme
e há vulcões
prestes a entrar
em erupção
e eles ficarão
a descoberto

ai perto
a algazarra
dos garotos
na sua pueril
brincadeira
de ir apanhar
as canas
e ainda se ouve
o resfolegar
de uma cansada
concertina
está a acabar 
o arraial
não vão deixar
de dançar
de mão dadas
contra a lonjura
e o desconhecido

amansa
lentamente
o estertor
dos corpos
vão ver-se
de novo amanhã
haverá  
de novo a festa
vai estrelejar
dentro de si
ele irá
levar-te consigo
até às nuvens
ali vão estar
definitivamente
protegidos
de qualquer
indiscrição.

Lisboa, 21 de Setembro de 2014
Carlos Vieira



“Kissing” por Alex Grey

sábado, 20 de setembro de 2014

do pecado da poesia todos os dias me confesso



Chega uma altura na vida
que tudo se esboroa
e se desfaz
no pó puro e duro

resta-nos 
apenas a fidelidade 
à poesia
para quem acredita

um pouco de pó
de poesia
misture bem 
é de consumo imediato

pouco elaborada
apenas rugas 
versos na pele do dia a dia
na génese ingénua teoria

poesia na hora
de uma solidão
que não contamos
que não contávamos.

de pequenas coisas
imprecisas memórias
derrotas e vitórias
a que sobrevivemos

de erros e desenganos
que soçobram
à dura luz 
do ardil da razão

neste tempo
ousar o poema
acompanhado do gesto 
épico de ternura.

Lisboa, 20 de Setembro de 2014
Caros Vieira

Pequena crónica contra a cegueira



O gato persa estendia a pata e jogava o novelo na varanda da vivenda, onde o sol se demorara, vislumbrei na porta de madeira o número 48 dourado.
Após chamar e não tendo resposta, entrei, segui o fio da meada, aposento a aposento, que adivinhei quase abandonados, página a página, desloquei-me como um felino até a origem da lã turquesa, percebendo que no final o gato continuava a brincar, enquanto na outra ponta, alguém ou algo a segurava, num dilema entre a firmeza e a imobilidade.
Fui-me debatendo entre um leve cheiro a mofo, longínquas iguarias e uma luz coada, onde se reflectia, uma miríade de poeiras suspensas.
Por fim, a um canto da sala, junto a uma janela em contraluz, um vulto que logo constatei esgrimia agulhas de tricot, embora um pouco encadeado, percebi que o fio turquesa, iria até junto do coração da silhueta.
Fixei os olhos no chão e fiz o exercício de me habituar à penumbra, à solidão secular dos objectos e dos móveis antigos, fui-me aproximando com o cuidado de não quebrar a frágil harmonia do momento, nem causar algum receio e até pânico, àquele que seria o meu próximo interlocutor.
A personagem estava sentada num maple, em oblíquo em relação à minha posição, parecia estar à minha espera, enquanto continuava a tecer a sua cruzada, pareceu-me ouvir-lhe uma breve interjeição, um desvio subtil da sua cabeça coroada de prata na minha direção, não me vendo, não poderia ver-me.
Afinal foi um homem que puxou o fio, seria mais uma sua artéria, com o qual articulava a sua precária serenidade, encarou-me mais fixamente, eu era para ele o que sempre seria, apenas um desconhecido, o persa entretanto aproximou-se, na sequência de um sinal para mim imperceptível, este transmitia-lhe a exacta noção do perigo.
Decidiu então falar e as palavras tinham todas o peso exacto, uma voz luminosa que parecia vir dos infinitos corredores do silêncio e das sombras.
Disse num tom onde se insinuava alguma angústia e desespero:
“ - Então é o senhor que vai levar os livros. Para mim, vai ser grande a perda, pois muito embora estarem na minha cabeça, vai ser pior no entanto, será a sua ausência, deixar de ouvir a sua voz, sentir o seu aroma, desfolhá-los, já que não os pude ler, sentia porém que o seu fim, não deveria este destino comum, de também eles, ficarem cegos entre estas paredes, nestas prateleiras!”

Lisboa, 20 de Setembro de 2014
Carlos Vieira

Foto de autor desconhecido de um gato que não é persa

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Estilo de vida



Olho para esta gente
as minhas gentes
e por aquilo que me parece
estão contentes
consigo próprios
não tem outras ambições
já atingiram
todos os seus objectivos
promoção, casa, carro e filhos
por esta ordem
ainda que a custo
de cruéis mensalidades
e hipotecas até ao fim da vida
o que é decisivo
é a taxa de esforço
todos reféns
a beberem do mesmo fel
também todos
cada vez mais circunscritos
por si próprios
mais circunspectos
cada vez mais longe
da poesia
e do sem limite
vencidos pela inércia
acomodados
neste estilo de vida
a prestações
e saldos e cupões
e seguros para fazer face
a qualquer acidente
desta vida moderna
e bancos a um juro
muito conveniente
sem viver acima
das possibilidades
sem darem o passo
para além da perna.

Lisboa, 19 de Setembro de 2014
Carlos Vieira



Introspeção



Dias de pântano
e de medo
quanto mais me mexo
e protesto
mais me enterro
os sonhos
deixaram de ser
de acção
mas de hipóteses
de movimento
sonhos de voltar
a correr contigo.

Lisboa, 19 de Setembro de 2014
 Carlos Vieira


Psicanálise com gaivotas



Sento-me na esplanada
sinto-me no Inverno
sento-me na praia
as gaivotas andam numa roda viva
o empregado anda em câmara lenta
eu estou em ponto quase morto
há tempestade no mar
e em terra falta-me o ar
enquanto aqui estou sentado
numa destas mesas de plástico
que anunciam refrigerantes
vem uma gaivota confraternizar
temos sempre umas migalhas
de qualquer coisa
para dar
para estas ocasiões
e voou para outra freguesia
repetiu seu canto minimalista
ter-me-á agradecido
e dito que na sua experiência
de espuma e naufrágios
estava farta de tragicomédias.

Lisboa, 18 de Setembro de 2014
Carlos Vieira

Foto retirada do site WWW.tripadvisor.com