sexta-feira, 11 de julho de 2014

Que falta nos fazem as palavras



Há dias
em que as palavras
nos fogem
por mais que lhe estendas as mãos
e lhe ofertes os lábios
e nos esqueçamos do corpo
elas não se aproximam
ou partem
de nariz no ar
empertigadas
sem dizer palavra
como se esse silêncio
ou essa tolerância
fosse a coragem
sem um adeus
esvaem-se
enrolam-se na língua
diluem-se nos espasmos
grãos de areia
que se evadem entre os dedos
e nós ficamos mudos
de tantos medos
atónitos
despojados dos escudos
da resposta
que apenas aquelas palavras
nos garantem
cegos
de folhas que se apagaram
perante o absurdo
redigido
de não poder nomear
o dia e o objecto
e de tu seres
para lá da timidez
das palavras
que ficaram entaladas
na garganta
o único ser vivo
que ainda me atrevo a soletrar
és o corpo
refúgio das palavras
sobreviventes
apenas
uma rubrica efémera
de luz.

Lisboa, 11 de Julho de 2014
Carlos Vieira


quinta-feira, 10 de julho de 2014

O poema é a pele do poeta




a pele 
da serpente
agita-se
enroscada
no tronco
do arbusto
acena
em silêncio
memórias
que arrastou
na areia 
do deserto
a serpente
deixou 
a sua pele
no e para
o mundo

Lisboa, 9 de Julho de 2014
Carlos Vieira

segunda-feira, 7 de julho de 2014

The worker's plea

workers plea.jpg

As cabras devoram...

As cabras devoram
os papéis
que esvoaçam 
pelas valetas
uma a uma 
o poeta encaminha 
as palavras 
para o redil
antes que a lua
o transforme em lobo
e os versos
em arame farpado.

Lisboa, 7 de Julho de 2014
Carlos Vieira

I know why the caged bird sings

A free bird lesos on the back
Of the wind and floats downstream 
Till the current ends and dips his wing
In the orange suns rays
And dares to claim the sky.

But a BIRD that stalks down his narrow cage
Can seldom see through his bars of rage
His wings are clipped and his feet are tied
So he opens his throat to sing.

The caged bird sings with a fearful trill
Of things unknown but longed for still
And his tune is heard on the distant hill for
The caged bird sings of freedom.

The free bird thinks of another breeze
And the trade winds soft through
The sighing trees
And the fat worms waiting on a dawn-bright
Lawn and he names the sky his own.

But a caged BIRD stands on the grave of dreams
His shadow shouts on a nightmare scream
His wings are clipped and his feet are tied
So he opens his throat to sing.

The caged bird sings with
A fearful trill of things unknown
But longed for still and his
Tune is heard on the distant hill
For the caged bird sings of freedom.

Acrobacias II



Dois pastéis de Belém
duas fatias de Tejo
na perpendicular
à torre
42 chineses
de olhos em bico
com a nossa história
em fila indiana
a entrar nos Jerónimos
que se distendiam na sua letargia
de réptil de calcário
em manhãs de sol
a Sportínguiada prosseguia
com os saltos mortais
e a ginástica de todos os dias
e as espáduas e os troncos
por meio dos mastros e das velas
e das nuvens
e das copas dos pinheiros mansos.
Sem canela não é a mesma coisa
e as reflexes a disparar
a preservar
os mais inacreditáveis momentos
seja imensamente breve
e à sua volta
em harmonia a "fast food"
o turista pergunta
ao português
cada vez mais estrangeiro
no sua própria terra
enquanto lhe resta país
venha ver as estrelas
aqui é o planetário
deixe-se levar
planar
"Les flaneurs"
enquanto não acabam as estrelas
vive-se esta industentável leveza dos dias
a leviandade
e a articulada sabedoria das flores
no seu diálogo
de seiva e bater de asas
com as aves e os insectos.
Gosto dos pastéis
um pouco mais queimados
a Matilde prossegue
no seu gesto pelo ar
de conhecimento do mundo
indecisa
entre a acrobática e a aeróbica
na ilusão dos automatismos
à minha frente o cão rafeiro de Pavlov
olha para mim com os olhos mais tristes
do seu teatro absurdo
eu condicionado
dei-lhe um bocado de bolo.
O segredo está na massa folhada
o café está a arrefecer
e as caravelas estão a chegar
regressando da viagem
ao centro
de nós próprios
depois que nos demos aos vários mundos
de mapa em punho
o turista desorientado
olha ora estarrecido
ora preocupado perante a paisagem
e os homens monumentais
que se lhe apresentam
e uma criança que corre
na sua brincadeira apátrida
desconhece os perigos que a espreitam
que a esperam
entretanto vive com toda a intensidade
que a ignorância e os imperfeitos conhecimentos
lhe permitem
e a minha filha termina a exibição
em espargata
por cima dos ombros
de um fado
onde acabam também
os meus versos.

Lisboa, 5 de Junho de 2014
Carlos Vieira




domingo, 6 de julho de 2014

Manhã de sábado na reserva 


Na pastelaria Tamoyo
30 anos depois
uma manhã estranhamente triste
de Verão
fria
a pedir o calor deste café
o mesmo índio multicor
de tantos livros aos quadradinhos
de penas caídas pela nuca
e olhos de falcão
e sete pessoas sós
caras pálidas
a sós consigo mesmos
com seus escalpes
outros
a reencontrarem-se
nos jornais
avidamente
por vezes olham por cima
do papel
para se assegurar que falam 
da mesma realidade
ou se 
independentemente das notícias
o seu mundo continua ali
reformados lobos da pradaria
a recuperar de uma noite de insónia
que a crise acentuou
e quase todos clientes antigos
locais
os empregados
quase pessoas de família
ou pelo menos da mesma tribo
impera um silêncio no estabelecimento
ou então uma fala mansa e baixa
acentuada
de olhares cúmplices
e do arrumar dos gestos
que prolongam esperados movimentos
tranquilos 
no sossego do bairro
algures na outra sala ao lado
elevam-se sinais de fumo
de uma civilização que desaparece
duas senhoras de certa idade
antigas princesas
assumem orgulhosamente
as suas pinturas de guerra fora de tempo
um pequeno índio guerreiro
ouve atentamente os concelhos do seu avô
em cima do cavalo mecânico
chegam pessoas como se viessem da missa
com seu carregamento semanal
de serenidade
e de setas políticas
eu paro escuto e olho para tudo isto
tento escolher as palavras
que podem ser as substâncias e as rezas
do ancestral feiticeiro
que me possam desenganar
e simultaneamente sejam também poção
que me façam acreditar na força
justa e no saber laborioso
da bondade
que me inspira 
este galope matinal
pelos versos
acompanhados
por um café 
em chávena aquecida.

Lisboa, 6 de Julho de 2014


Carlos Vieira