quinta-feira, 3 de julho de 2014

Despes-te

despes-te
és agora
poro a poro
a coragem
à flor da pele
e a chuva
timída cai
no Verão
do teu torso
espelho nu 
embaciado
onde sacio
a sede
nesse vestido
de água

Lisboa, 2 de Julho de 2014
Carlos Vieira

quarta-feira, 2 de julho de 2014

voo eterno



uma pétala
caiu
na penumbra
do pensamento
que floriu
onde passei
e ali ficou
sem golpe de asa
cativa
do vento
que a possa
despertar
da morte
onde pousou
desconhece
a precariedade
daqueles
que ao defenderem
a liberdade
eternamente
da vida
ficam reféns
pétalas caídas

Lisboa, 2 de Julho de 2014
Carlos Vieira



Ode à deusa da floresta



O arco tenso
a flecha dardeja
o alvo eufórico
antes existiu
um rumor de penas
e ferro forjado
um silvo sibilino
ofereces o peito
há um murmúrio
de sangue quente
que atravessa
a floresta
o fruto trespassado
e no seu âmago
tartamudeia
uma festa
de cintilações
e silêncios
de sementes
rasgam a polpa
teus dentes
irrompe na clareira
teu rosto
de puro alabastro

tudo isto
descobre a língua
uma frescura de lâmina
que penetra
e de novo deixa
oculta a palavra
que perdura
no altar sagrado
de invadir
de palpar
o mistério humano
e invisível
que pressinto
na tua boca
de deusa atingida
pela seta
do prazer indizível
entregando-se
á infinita loucura
da seiva
e do profano.

Lisboa, 2 de Julho de 2014
Carlos Vieira

                                                O Despertar de Adónis de John Williams

terça-feira, 1 de julho de 2014

Rigor mortis



Argumento sólido 
é o eterno silêncio
dos lábios
que arrefecem
depois de teres
mordido
a última palavra 
que talvez apenas
pronunciaram
só para provocar
a morte
que nunca ninguém
julgou
estar tão perto
e agora
depois que soletraste
o primeiro pó
e que olhas o céu e o mundo 
com os olhos vítreos
já parece perguntares
pelas sementes
que te vão incendiar
e pelos abraços 
das raízes
no próximo Inverno
onde vais voltar
a anunciar como nunca
o perfume e a cor
com que se povoa
a eterna planície
e se desafia 
a mais discreta 
lonjura 
e se aventurou
a solidão
e eu ando à tua volta
neste afã
já nada sentimental
de perceber
a causa da tua morte
numa lógica 
de médico legista
de investigador criminal
como se tivesse
há muito habituado
à tua ausência
como só a minha falta
de independência
a minha inexplicável
adoração
o permitisse
com o gume
da máxima profundidade
e rigor

Lisboa, 1 de Julho de 2014
Carlos Vieira


sábado, 28 de junho de 2014

Discernir



Discernir
é uma palavra
que me atrai
e isso me impede
de lhe descobrir
o cerne
dando-me o ânimo
para prosseguir
escravo
do seu mistério

ir até ao cerne 
da palavra
é de alguma forma
como ir
ao centro da terra
e voltar
o que nos reconduz
a decantar
a luz e o sal
e inventar
o princípio do mundo

perceber
a força que emana
da fragilidade
translúcida
do cristal
da voz
e voltar a discutir
o adquirido
admirando-o
de outro ângulo
um átomo
que saboreio
no céu da boca

e na fragância
que a flor exorta
possuir
a essência
verdadeira
e do momento
extrair a precária
beleza da corola
e a silenciosa
clarividência
e equilíbrio
do caule
que a sustenta

e neste jardim
submerso
ficar sem respirar
perante
a quietude
dos animais
e das plantas
sem esquecer
que na superfície
aparente
das palavras
se esconde o grito
e a angústia 
do amor que não
corresponde
e a incapacidade
de discernir
as muitas mortes
de quem ama.

Lisboa, 28 de Junho de 2014
Carlos Vieira



sexta-feira, 27 de junho de 2014

Pássaro ferido




Oiço do outro lado 
da solidão
um ruído estranho
de animal
ou de respirar de ladrão 
abro a porta
repentinamente
e bateu a asa ferida
o pássaro
que se tinha
ali aconchegado
na soleira da memória
de par em par
abri o futuro ao poema
que nasceu
para acolher a ave
que sem querer
lhe bateu à porta.


Lisboa, 27 de Junho de 2014
Carlos Vieira


quinta-feira, 26 de junho de 2014

Percalços



de quem 
gosta de andar descalço

de quem
deu um passo 
em falso
na sua busca 
da verdade
e nunca mais
se encontrou

um pequeno percalço
risco
entre a realidade
e a cópia
um grande salto
para a humanidade

se vive
a liberdade
com a solidão
no encalço

por vezes
tudo é apenas 
uma simples
questão 
de perspectiva
e luz

de quem um dia
deu um passo em falso
deixou de andar descalço
e vive agora a pairar
suspenso
da noite dos tempos

Lisboa, 26 de Junho de 2014 
Carlos Vieira