terça-feira, 17 de junho de 2014

Bicho de conta


observo
o bicho de conta
em verso

Lisboa, 17 de Junho de 2014


Carlos Vieira

exercício de voo



por vezes 
o amor
é uma andorinha
um boomerang
que regressa 
para fazer
num qualquer 
momento
a preto e branco
o ritual
da Primavera 

Lisboa, 17 de Junho de 2014
Carlos Vieira

Elegia do afogado



Podes seguir agora
pelo cais
não cais
carregando
esse teu molho de ossos
desengonçados
vais nesse desespero
de quem fica
no olhar 
de quem parte
escutaste o alvoraçar
de um incêndio
fulminante
na guelra dos peixes
e o rumor da água
e os limos húmidos
nas paredes 
de mármores antigos
dos teus últimos beijos
devastados de marés
e de razões
conheceste o fulgor
dos pequenos caranguejos
espreitando
na aresta de um coração 
esse motor fora de bordo
que sangra viagens
no porto 
sabes que é noite 
pelo ranger das madeiras
e das ferragens
a lamberem os pulsos 
deste tempo
no drapejar
das velas brancas
por cima das quais
descansam as gaivotas
e a audácia do pensamento
onde falta o vento
e a bússola
arrastas a âncora 
e uma garrafa verde
a partir da qual
vislumbraste um rumo
de penumbra
a sonhar seda e especiarias
e rotas ancestrais
na escala de cabotagem
que te tocaram
na vida e na morte
agora ali estás
literalmente
afogado
de toda a paisagem
desfigurado
embora coroado
desse viço resplandecente 
de algas
a descaírem-te
pelo sobrolho.

Lisboa, 17 de Junho de 2014
Carlos Vieira


domingo, 15 de junho de 2014

Sinais de Fogo

Oiço nas minhas costas
o ruído breve
da pedra de isqueiro
um quase imperceptível
cheiro a gasolina
sei de memória
que se seguirá a pequena
língua de fogo
o primeiro cigarro do dia
nos teus lábios
o teu rosto que se esfuma
a tua mão vai pousar
de seguida em brasa
no meu ombro
está chegado o tempo 
de te abandonar
em que se apagou a chama
e se tornou impossível
olhar-te de frente
e assim me confrontar 
com a morte
que são as cinzas
do incinerado amor
de costas voltado.


Lisboa, 15 de Junho de 2014
Carlos Vieira

Teu corpo minha estação


A roupa leve
flutua
por cima
do esplendor
da tua pele
minha brisa
de despertar
o Verão
está aí à porta
despes-te
nas minhas narinas
o frémito
do odor
do teu corpo
progressivamente
andas à deriva
pela casa
ávida de sombra
rumo à nudez
essa minha miragem
absoluta
o Verão torna o ar
irrespirável
em mim
acende-se o ciúme
não vão
os vizinhos
entre as lâminas
dos estores
vislumbrar
o deslumbramento
roubar-me
o segredo
da tua presença
de um tempo
fresco e precário
coincidindo
eterna e solar
no prenúncio primeiro
de mais um Verão
que nos envolve
teu corpo nu
estival
minha próxima
estação 
a pedir chuva.
Lisboa, 15 de Junho de 2014
Carlos Vieira


                                          "  Summer In The City" - Edward Hopper (1949)

sexta-feira, 13 de junho de 2014

A conferência



A conferência prossegue 
como um circo de vaidades
e os papagaios
não se cansam 
não se detém 
na sua apresentação
multimédia de vacuidades
tem sempre uma piada
para acordar
a audiência
tem frases lapidares
fluxogramas
e imagens 
nunca tem dúvidas
a plateia
semi adormecida
nunca tinha pensado naquilo
pelo menos embrulhado
daquela maneira
e o conferencista prossegue
de forma a atingir o zénite
mesmo a tempo
depois segue-se 
a colocação de dúvidas ancestrais
os que perguntam
sabendo a resposta
os que só querem 
cinco minutos de fama
e procuram convites
para eventos
os intrusos
os especialistas de tudo
os que procuram os oradores
no fim da seção
os cumprimentos 
no princípio da seção
a abertura
o discurso redondo
os cumprimentos
da organização
as desagradáveis interferências
do microfone
e eu a passar para as brasas
e o meu vizinho a ressonar
isto que não acaba
e um intervalo para o café
e um telefone
que não estava no silêncio
e as palmas e o riso
por efeito de simpatia
meus senhores
e minhas senhoras
eis os vendedores 
de "banha da cobra"
dos tempos modernos.

Lisboa, 13 de Junho de 2014

Carlos Vieira

Estátua de sal

ali estás 
sentada 
serena
expectante
de perna cruzada
com o horizonte
de um mar azul 
à tua espera
o cristal
linear

inquieto
o teu cão ladra
ao vento
fareja
o meu desejo
cruzado com o seu 
de afastar-me 
de ti
e já agora
do areal

eu trago 
à trela
a contradição
da liberdade
tu és a estrela 
que vem 
ao encontro
do meu tempo 
meu refúgio
e búzio
a murmurar
o sal de um segredo

Lisboa, 13 de Junho de 2014
Carlos Vieira